De Nolan à Labatut: o Mito de Pandora modernizado
- Italo Aleixo
- 3 de ago. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 7 de set. de 2024

"mas a mulher, a grande tampa do jarro alçando, dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares. Sozinha, ali, a Expectação em indestrutível morada abaixo das bordas restou e para fora não voou, pois antes repôs ela a tampa no jarro, por desígnio de Zeus porta-égide, o agrega-nuvens. Mas outros mil pesares erram entre os homens; plena de males, a terra, pleno, o mar; doença aos homens, de dia e de noite; vão e vem espontâneas, levando males aos mortais, em silêncio, pois o tramante Zeus a voz lhes tirou."
- Hesiodo, Mito de Prometeu e Pandora, Os Trabalhos e os Dias.
O mito de Pandora que versa sobre todos os males do mundo liberados após a abertura de uma arca, ecoa na mitologia judaica quando Eva come o fruto proibido e comete o Pecado Capital. Antes de Pandora, Prometeu já havia sido punido por roubar o fogo dos deuses e cedê-lo aos humanos. Indo mais atrás no tempo, a maioria dos mitos sobre a origem do fogo que conhecemos trazem em seu cerne um "crime" cometido, em seu ensaio A Origem da Espécie, Alberto Mussa discute que esse crime é um insulto contra a própria natureza e é justamente o que confere a separação ontológica entre o homem e ela.
Esses mitos transcendem o tempo e aparecem renovados em obras atuais. Recentemente chegou aos cinemas Oppenheimer, a biografia do cientista considerado o pai da bomba atômica. A obra que é até agora talvez o melhor filme de Christopher Nolan, se envereda pelas esferas científica, política e principalmente ética, onde o mito de Pandora é mais uma vez revivido, quando os cientistas precisam pesar na balança moral até onde vai a fronteira do conhecimento e as consequências do que isso pode causar.
De todos os filmes do diretor esse é talvez o que tenha mais facetas: consegue retratar os embates científicos durante o desenvolvimento de uma nova ciência, tecer a narrativa política nos bastidores do processo, uma força por si só tão complexa quanto a própria física quântica e consegue nos minutos que antecedem o teste da bomba, criar um dos melhores ambientes de expectativa e tensão do cinema nos últimos anos. Assim como o clímax do filme se condensa numa nuvem em forma de cogumelo, a trama também se condensa em seu ator principal: o excêntrico J. Robert Oppenheimer, que a medida que a narrativa avança, evolui para um arquétipo divino: monotônico, poderoso e sem poder nenhum sobre a própria criação... daí então vem a queda!
A pressão por desenvolver uma arma antes de seus inimigos é persuasiva, mas não tanto quanto a curiosidade ancestral a respeito de tudo o que existe. Essa "indagação" pelo oculto, intrínseca à natureza humana, é talvez a pedra fundamental de todos esses mitos. Tal ânsia pelo conhecimento, provavelmente foi o pesadelo de gerações de conservadores em todos os momentos da existência humana, eu posso ver os primeiros Homo sapiens debatendo entre si sobre o uso ou não do fogo e quanto sangue foi derramado em seu nome. As mitologias estão repletas de artefatos proibidos e no âmago de todos eles está essa "indagação" fundamental!

Um livro recente que trata de uma maneira muito interessante esse tema ainda tão moderno, é Quando Deixamos de Entender o Mundo, do chileno Benjamin Labatut. São cinco microbiografias sobre cientistas do século XX, trazendo à tona a insanidade que suas descobertas lhes causaram. Embora os contos acompanhem o desenvolvimento e o desdobramento da pesquisa em si, o verdadeiro foco é no impacto pessoal que essas revelações causaram aos seus descobridores. Mais humanista do que científico, é um livro de anseios filosóficos, trilhar o caminho do conhecimento pode ser traumático, a calmaria da ignorância é muitas vezes mais tentadora do que um mar revolto de novas descobertas.
Labatut mostra como essas grandes personalidades movidas pela busca irrepreensível pela verdade, combateram paradigmas, mudaram o mundo e quanta aflição receberam como pagamento. Num dos contos, Karl Schwarzschild que elucida as equações de Einstein e descobre que em certas ocasiões o próprio espaço e tempo colapsam, enlouquece e se indaga se existiria limite para o conhecimento humano, um ponto sem volta para o que nos era permitido saber: sua resposta viria alguns anos depois no formato de nuvens de cogumelo!
"A teoria produz um bom resultado, mas dificilmente nos aproxima do segredo do Criador. Estou, em todos os casos, convencido de que Ele não joga dados." famosa frase de Albert Einstein, aparece tanto no filme de Nolan como no livro de Labatut. Era uma resposta à física quântica, que em contraste ao pensamento realista de Einstein apostava na incerteza para descrever a natureza. Sair de séculos de avanços sistemáticos da física, de efeitos e causas bem definidos para um mundo onde tudo é expresso em forma de probabilidades vagas e nada é o que parece, foi um choque para o próprio Einstein que anos atrás tinha revolucionado a própria noção de um espaço euclidiano estático. Tal debate é um dos momentos marcantes do livro, quando Labatut escreve sobre o surgimento da física quântica e retrata o Congresso de Solvay de 1927.
"Se Deus não existe, tudo é permitido" a famosa citação de Irmãos Karamazov sintetizam o niilismo, onde a morte de deus é a morte de uma narrativa coesa dando lugar a uma realidade fluída o bastante para colapsar em si mesma. Ela é um equivalente filosófico à frase de Einstein, onde poderíamos substituir a palavra deus por ordem. A ordem é uma condição necessária para o funcionamento da ciência, as leis da física só explicam o funcionamento do cosmos porque descrevem uma ordem subjacente ao universo, o abandono dessa ordem coloca toda existência em cheque.
Embora o significado de "ordem" seja de certa forma fluído e subjetivo, seu conceito é bem definido. Ameaçar a ordem (seja lá o que ela represente) sempre deve ter sido considerado um tabu. Alberto Mussa discute em seu livro, que os mitos sobre o fogo trazem em consigo própria noção dos tabus, ao explicar o funcionamento das coisas e estabelecer dogmas. Os tabus estão presentes desde o início dos tempos e traçam uma margem para a ordem, um limite entre o permitido e mais do que isso, estabelecem uma fronteira para o conhecimento. Um tabu normalmente vem de uma proibição metafísica, que se alicerça justamente na ausência de um conhecimento (um tabu é diferente de uma proibição legal), por isso a busca pelo conhecimento é o maior de todos os tabus, e é expressa na forma de lendas (como os mitos de Pandora e Eva), de maldições, de de medo do incerto, os próprios cientistas tem o péssimo hábito de transformar em dogmas os seus paradigmas, estabelecendo um tabu sobre eles.
É como se o cérebro humano estivesse adaptado para uma realidade específica e deixa de ser apropriado quando essa realidade é desvelada (Lovecraft soube brincar com isso muito bem). Mais do que isso, é como se a realidade em si fosse composta de certas diretrizes que ao serem descortinadas assumem estados diferentes (parece fantasioso, mas é justamente isso que o Princípio da Incerteza postula).
O Mito de Pandora, o Pecado Capital, Oppenheimer e Quando Deixamos de Entender o Mundo contam um pouco dessa história, não enaltecem a conquista científica, não comemoram a vitória da razão sobre a ignorância, mas tão pouco pregam uma lição de moral. São obras que versam sobre a violação do tabu do conhecimento e sobre a queda que envolve isso. Vale ressaltar, que não estaríamos aqui senão fosse o fogo e todos esses mitos dão origem a humanidade como ela é, com suas maravilhas e seus horrores. Fica a reflexão: todos essas personagens que caíram e perderam sua sanidade, até que ponto estavam certos? Até que ponto nos é permitido ascender à esfera divina?
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