top of page

A alma, a memória e o silêncio dos animais

  • Foto do escritor: Italo Aleixo
    Italo Aleixo
  • 8 de jun.
  • 4 min de leitura

Não são raras as noites de insônia onde fico rolando na cama, esperando ansiosamente pelo momento em que aquela voz interior vai parar de me dar atenção, começar a divagar sozinha e dar espaço para os sonhos. Nesses momentos de intenso diálogo interno, é que mais penso na natureza dessa voz e em como deve ser mais tranquila a vida dos animais que não precisam lidar com ela.


"A busca pelo silêncio parece uma preocupação especificamente humana. Outros animais fogem do barulho, mas é um barulho feito por outros que eles tentam evitar. Só os seres humanos querem calar o clamor da própria mente." - Jhon Gray, O Silêncio Dos Animais

No passado acreditava-se que apenas os seres humanos tinham alma. As crenças mais aceitas eram as de que os outros animais funcionavam no piloto automático, como verdadeiros autômatos. Por alma, podemos entender a consciência, essa noção de que nós existimos — e que Descartes ilustrou tão bem — a voz interior que está a todo o momento conversando com a gente. Mas a Teoria da Evolução de Darwin arrancou os homens de seu pedestal e os lançou à mesma sopa primordial de onde vieram todos os outros seres vivos. O conhecimento avançou ao ponto de descartamos a existência de alguma entidade substancial que poderíamos chamar de alma e descobrirmos que os outros animais tem sim consciências e possuem emoções bastantes desenvolvidas. Longe de chegar à alguma conclusão, isso só colocou em cheque o status especial da nossa consciência.


A consciência é formada pelos estímulos externos que captamos através dos órgãos dos sentidos e armazenamos na memória. Cada sinal que um ser vivo recebe do mundo externo (a visão, o odor, o toque, etc.) é armazenado de alguma forma na memória e é ali que vai se construindo a realidade subjetiva — única para cada indivíduo. A memória é dinâmica, as informações ali são atualizadas e reconfiguradas constantemente e por isso a consciência está sempre em desenvolvimento, ela não é algo definido, está sempre em transformação.


Saber como se parece a consciência de outro indivíduo é algo impossível, nunca conheceremos sequer a consciência de outro ser humano, imagine compreender organismos com órgãos sensoriais completamente diferentes dos nossos. Pense, a título de curiosidade, nos polvos, que tem a maioria dos neurônios distribuídos pelos tentáculos. Já foi observado que cada tentáculo pode agir independentemente um do outro, sugerindo que esses moluscos possam ter uma consciência individual para cada tentáculo... Mas tem algo em específico que separa o Homo sapiens dos outros animais: a linguagem!


Não se sabe como, quando e nem de que forma ela surgiu, não sabemos nem mesmo como funciona no cérebro, mas é a linguagem que permite a existência de todo o "universo humano" como conhecemos. A linguagem é a capacidade de criar símbolos! Ao criar um símbolo, estamos criando objetos que não existem no mundo real, mas que passam a existir no mundo subjetivo: um graveto, é apenas a parte de uma planta, que pode, por ventura, ser utilizado como ferramenta, mas nada além disso. Nós humanos, no entanto, podemos transformar um graveto em um arpão ou um porrete e agora existe um objeto com fins específicos. Ao graveto não cabia nenhuma função específica, mas lhe demos um propósito: ser uma ferramenta para pescar ou para atacar! Com a linguagem nós criamos o telos, aristotélico. Assim como a linguagem permitiu o surgimento desses objetos, ela pode ter mediado a existência da alma. O cogito existe porque nomeamos nossa consciência com símbolos — as palavras.


Longe de ser apenas um debate filosófico e científico, essa relação da consciência com as palavras é a pedra angular de toda metafísica. "No Princípio era o verbo" não é só um lampejo poético para o mito da criação, mas sim um questionamento metafísico profundo. O que veio primeiro, a linguagem ou a consciência? Essa ligação entre as palavras e a existência é um assunto presente em praticamente todas as religiões, os vedas e a bíblia cristã, separados um do outro por séculos, divagam sobre o mesmo tema. De toda forma, o mecanismo que nos diferencia dos outros animais ainda é um mistério, mas a resposta só pode estar na memória.


Os animais sonham, sentem falta uns dos outros, tem desejos, etc., mas só nós temos sentimentos abstratos verdadeiros, que são construídos com o uso da linguagem — da mesma maneira que um graveto se transformou em arpão, um estado fisiológico específico pode se transformar em amor, ódio, saudade, etc. É muito provável que os animais comecem a criar esses conceitos na sua memória, mas não conseguem desenvolvê-lo o bastante para se tornar algo concreto. Enquanto nós abstraímos a consciência e nos projetamos com o uso das palavras — a noção que você tem de você é uma criação artificial da linguagem — os animais também devem fazer algo parecido, mas o eu dos animais nunca se concretiza. Algum mecanismo no nosso cérebro permite manter essas memórias, enquanto os animais as esquecem. A consciência dos animais deve ser algo parecido com o esquecer de si mesmo continuamente.


Somos então de fato especiais e dotados de alguma singularidade evolutiva? É justamente a capacidade de se lembrar das coisas e reificá-las que nos torna tão propensos à considerar tudo especial. Já que que não herdamos a capacidade de esquecer dos outros animais, não consideramos natural o apagar dessas memórias e tememos sua perda. O preço que se paga é o fato de sermos melancolicamente nostálgicos, sempre apegados ao passado, pois somos assombrados por essas memórias e atormentados pelas vozes que nunca se calam. O silêncio que buscamos no sono, na meditação ou em substâncias psicotrópicas, os outros animais tem naturalmente. O silêncio dos animais é uma dádiva que nós perdemos!

Comments


© 2023 por Meras Literatices. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Branca Ícone Instagram
bottom of page