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a Leitura Ativa e o Leitor como Artesão

  • Foto do escritor: Italo Aleixo
    Italo Aleixo
  • há 2 dias
  • 7 min de leitura
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Posso dizer que tive três momentos chaves que moldaram a minha paixão pelos os livros. Nunca me esqueço de uma tarde no hospital, quando tinha acabado de passar por uma cirurgia no nariz e minha mãe chegou com uma "surpresa" para mim: dois livros da série Goosebumps. Eu não sou capaz de eleger qual foi o melhor presente que já ganhei na vida, mas aqueles são bons candidatos. A lembrança da minha mãe tirando aqueles dois livrinhos da bolsa e minha ansiedade em começar a lê-los nunca saíram da minha memória. Provavelmente, esse pode ter sido o gatilho que definiu o amor que tenho até hoje pelos livros.


Por influencia dela e de meu avô, eu acabei tomando gosto pela leitura desde cedo, embora não fosse uma atividade à qual eu me dedicava. As vezes lia um livro policial, ou algum mistério e então passava anos sem pegar noutro livro. O segundo momento decisivo nessa vida de leitor, foi durante a adolescência, quando então eu já não lia mais, que um amigo apaixonado pela leitura me emprestou alguns livros da Anne Rice. Voltar a ler depois de tantos anos me deixou extasiado, uma vez que pude sentir novas emoções que a leitura proporcionava, coisa que só tinha encontrado em filmes ou jogos de videogame. Foi como um universo que se abria diante de mim, desde então nunca mais parei de ler!


Antigamente eu lia romances, thrillers (muitos!), história de aventura, fantasia e terror. Tudo que eu achasse aleatoriamente em sebos e livrarias e que me causassem esse efeito dopaminérgico. Eu estava naquela fase que queria ler todos os livros que existiam, desde que fossem agradáveis claro. A relação entre o livro e o leitor é uma via de mão dupla: todo livro tem a capacidade de moldar a visão de mundo e a consciência do leitor, que com o passar do tempo também altera sua relação com os livros e a maneira de ler. Antes eu lia pelo simples prazer que a história me oferecia, queria fugir da realidade e descansar a mente sem ser contrariado — não me esqueço que odiei Cormac McCarthy na primeira vez em que li — já hoje sou apaixonado não apenas pelo conteúdo contido nos livros, mas pelo próprio objeto em si. Não estou falando de capa dura, capa bonita, folhas coloridas ou ilustrações, mas sim da ideia de que um maço de papel encadernado pode encerrar tanto conhecimento e fragmentos de outras consciências. De toda forma, essa noção só veio com o tempo.


Essa relação de admiração pelos livros foi sendo construída com o tempo e um livro que despertou em mim essa noção foi O Mundo da Escrita, de Martin Puchner. Nele o autor nos conduz à uma jornada pelo mundo da escrita e mostra como tal ferramenta moldou a história da humanidade. Passando pelas diversas reinvenções do livro enquanto objeto, o autor mostra também a importância do livro enquanto farol que norteia o pensamento humano, seja para fixar narrativas ou criar identidades coletivas. Foi nesse ponto que eu me deparei com um livro que mudou meu modo de ler: Omeros, de Derek Walcott.


A leitura deve ser um processo ativo


Ler é um hobby e demanda um gasto enérgico do leitor. O leitor que simplesmente bota as mãos em Omeros e começa a ler de maneira fortuita, vai se deparar com um poema meio sem graça, sem magia ou grandes feitos, um triângulo amoroso ordinário e personagens aleatórios pipocando nas páginas aqui e acolá. Vai ser difícil encontrar algo proveitoso em Omeros, aquele que lê apenas por obrigação e muito provavelmente seria um livro que eu teria abandonado em outra época. Porém, naquele momento, eu estava muito interessado em entender o porquê dele ter sido tão importante a ponto de ser lembrado entre os grandes livros da humanidade e garantir um Nobel para seu autor. Ler Omeros foi o terceiro momento na minha caminhada de leitor.


Omeros é uma obra sobre identidade nacional. Na época eu tinha me comprometido à ler os principais livros de cada país, então criei uma lista com livros fundamentais de várias nações — Gente Independente (Islândia), Os Frutos da Terra (Suécia), Sobre Heróis e Tumbas (Argentina), entre outros — e Omeros estava nessa lista. Eu não pretendia apenas "viajar", mas queria conhecer e entender um pouco da vida em outros locais do planeta. Eu queria sentir como é a realidade para outras pessoas inseridas em narrativas distintas.


Por mais agradáveis que sejam, as histórias de pescadores contidas nas páginas do livro são a princípio banais e não são autoexplicativas com relação ao seu impacto e influência. Por isso um passo importante foi pesquisar o significado do título. É muito mais simples ler um livro sem dar importância para seu nome, na maioria das vezes os títulos são explícitos, mas e quando seu significado não é tão claro? — porque To Kill a Mockinbird recebeu esse nome? — Não é nenhum segredo que Omeros é uma referência à Homero, autor de A Ilíada e Odisséia, mas é apenas em posse dessa informação que o leitor é capaz de perceber que os personagens de Derek Walcott foram nomeados em homenagem aos famigerados personagens da mitologia grega. Agora as preocupações cotidianas da ilha ganham ares mais míticos: os participantes do triangulo amoroso, Aquiles, Heitor e Helena, deixam de ser meros cidadãos comuns e ecoam aqueles heróis gregos que também guerrearam por causa de outra Helena; montanhas e fontes vulcânicas espelham o Olimpo e o Tártaro; a labuta daqueles que ganham a vida no mar, remetem aos Argonautas ou outros guerreiros que precisaram singrar o Mediterrâneo. Todo aquele cotidiano flerta com as jornadas épicas da mitologia grega e a vida comum se torna uma repaginação de uma história lendária.


Dessa forma, o conhecimento de obras antiquíssimas é essencial para o bom entendimento de outras, contemporâneas, mas isso só diz respeito à toda essa correlação estética. O próximo passo é conhecer o contexto histórico. Olhar para a Mona Lisa sem saber quem foi DaVinci ou o que foi a Renascença é só olhar para um retrato esquisito qualquer, o contexto histórico é tudo! Omeros foi escrito no período pós colonial de Santa Lúcia, após a ilha conseguir a independência depois de mais de um século sendo disputada por Franceses e Ingleses. Esse contexto justifica a escolha estética de Walcott — foi no período colonial que a ilha recebeu o apelido de Helena das Antilhas, provável inspiração para a obra — e questiona a identidade de um povo cujas raízes não estão em Santa Lúcia. Omeros pode ser lido como um poema banal ou como a busca por identidade desse país recém forjado, habitado por africanos extraídos a força de seus lares, europeus que abandonaram sua pátria e mestiços que não sabem onde se inserir — como é o caso do próprio Walcott. Nesse contexto o mar surge como um personagem a parte, barreira onipresente entre os viajantes e sua origem — concepção muito bem explorada na literatura — e cria uma conexão entre Walcott e Homero, que também foi um apátrida condenado a vagar pelo Mediterrâneo — embora hoje suspeita-se que nem mesmo foi uma pessoa real.


Minha leitura de Omeros começou quando Martin Puchner dedicou todo um capítulo de sua obra apenas para discorrer sobre o livro de Walcott. Foi nesse capítulo em específico que eu me interessei pela importância da literatura na humanidade e comecei a fazer minha lista com todos os grandes romances de cada país. A leitura do livro em si se deu entre pausas e devaneios, fosse consultando páginas da Wikipedia sobre Santa Lúcia ou Walcott, fosse navegando no Google Earth para entender a geografia local. Leitura intercalada por notas, vídeos no Youtube e releitura de algumas lendas da mitologia grega. E durante esse processo, conhecendo e adicionando novos livros na estante.


É impossível saber tudo que se precisa saber para o bom entendimento de um livro, mas é dessa maneira, pesquisando antes, durante e após a leitura que vamos construindo uma boa interpretação. O conteúdo de um livro nunca está encerrado apenas nele, toda obra de arte é a consolidação de ideias, produto indireto das experiências do artista e documento histórico, que merece mais do que ser apenas consumida passivamente.


Isso, antes de um ritual ideal de leitura, é apenas um relato pessoal de como uma leitura — na verdade várias — em especial me marcou tanto. É perfeitamente adequado ler um livro apenas por ler, afinal, sem esse prazer fundamental o ato de leitura perde todo o sentido. Mas é com a leitura ativa, em conjunto com leituras paralelas e entendendo os meandros pelos quais um livro se extravasa de suas páginas, que o leitor e sua antibiblioteca são forjados.


A Antibiblioteca


É só essa relação mais íntima com a leitura que nos livra daquela angústia — tão comum em leitores mais jovens — de não conseguir ler todos os livros da estante. A função de um livro é tanto ser lida quanto não o ser, e sua leitura já começa durante a pesquisa, mesmo que ele nunca seja aberto. Até um determinado momento as estantes de um leitor são compostas apenas dos livros que ele compra compulsoriamente e se sente culpado de não conseguir ler e é só com o passar do tempo que elas vão ganhando identidade. É a construção da Antibiblioteca.


Logo, os livros "abandonados" na estante não são apenas obras adquiridas de maneira compulsiva, mas frutos de pesquisa e carregam em si os caminhos que os levaram até ali. Cada livro efetivamente lido, gera conhecimento, interesse e adiciona indiretamente novos livros na estante.


"Você vai acumular mais conhecimento e mais livros conforme envelhece e o crescente número de livros não lidos nas prateleiras olharão para você ameaçadoramente. Na verdade, quanto mais você sabe, maiores são as fileiras de livros não lidos." - A Lógica do Cisne Negro, Nassim Nicholas Taleb

Dessa forma, são dois os papéis de um leitor: ler e cultivar sua antibiblioteca. Construir um ambiente onde ele se sinta rodeado pelo conhecimento e à novas possibilidades. Se cada livro é uma porta para um mundo novo, os livros acumulados na estante são corredores meticulosamente construídos, cujas portas estão destrancadas esperando para serem abertas!

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