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O que é a ciência e qual a sua importância?

  • Foto do escritor: Italo Aleixo
    Italo Aleixo
  • 3 de jan. de 2024
  • 9 min de leitura



Durante o clímax da pandemia, foram muitos os acalorados debates online onde internautas defensores da vacinação e da ciência, confrontavam-se com indivíduos que, munidos de ideias conspiratórias, invocavam um mundo obscurantista e anticientífico. Porém, bastou mudar o enredo e poucos anos depois, muitos desses “paladinos da ciência”, estavam enraivecidos com um livro, então lançado pela microbiologista Natália Pasternak, que atacava as pseudociências. Nem precisamos nos ater ao tenebroso feed do Twitter para perceber o culto existente em relação as pseudociências, basta dar uma olhada em qualquer curso de graduação em biologia atual e descobrirá que a grande maioria dos estudantes tem seu mapa astral decorado, ou são colecionadores de “cristais de energia”. A noção do que é a ciência é complexa, foi desenvolvida ao longo de séculos em meio a muito debate filosófico e mesmo os próprios cientistas tem dificuldade em conceituá-la e definir suas fronteiras. Embora sequer seja compreendida pela maioria das pessoas, a ciência é difundida globalmente e é responsável por quase todos os avanços tecnológicos da sociedade, mas o que é e para o que serve a ciência afinal de contas? Sem pretender embrenhar pelas sendas da epistemologia, tenho como intuito apenas discutir superficialmente o que é isso que chamamos de ciência e porquê ela existe!


Nós, os Homo sapiens, somos apenas mais uma das espécies da Terra. Não somos mais especiais, por exemplo, do que os camarões do gênero Alpheus que são capazes de disparar um “tiro supersônico”, usando apenas a contração de suas quelas ou mesmo que os insetos do gênero Periplaneta, que habitam praticamente o mundo todo e podem sobreviver à catástrofes nucleares apenas se alimentando de resíduos. Assim como milhares de outros vertebrados, possuímos um esqueleto interno composto por cristais de hidroxiapatita, que nos sustenta e permite nossa locomoção, e temos a capacidade de gerar nossos embriões dentro do nosso próprio corpo o que também não nos torna especiais, uma vez que a maioria dos seres vivos se dá muito bem liberando a prole livremente na natureza. Também não há nada demais no fato de sermos animais sociais, que se organizam em grupo para aumentar o sucesso reprodutivo, estratégia empregada por diversos mamíferos e pela maioria dos primatas. Porém, em contraste com qualquer outra espécie na face da Terra, temos algo que nos difere: a linguagem.


Sem discutir detalhes específicos sobre a essência da linguagem, ela seria a capacidade de: mentalizar um objeto — na verdade muitas espécies têm essa capacidade transformá-lo num símbolo e compartilhá-lo através de sinais, vocais ou gráficos. Simbolizar um objeto é importante pois nos permite imaginar "coisas" e projetá-las para significados aquém ao momento atual: são relativamente comuns os vídeos de animais usando "ferramentas", mas não existem registros de ferramentas sendo mantidas para um uso posterior, por nenhum outro gênero do globo (para outros Homo sim). É justamente a incapacidade de cognizar uma lança e associá-la ao ato de caçar, que impede que orangotangos, chimpanzés e algumas aves, de guardarem essas ferramentas para usos sucessivos. Ao expressar e compartilhar símbolos, nós criamos uma realidade partilhada que só existe porque outros indivíduos entendem sua existência e creem nela: tome o dinheiro como exemplo, o que seria de um pedaço de metal, papel ou plástico, se as pessoas não acreditassem no seu valor simbólico? — ou ao menos tente fazer compras em outro país, utilizando apenas a sua moeda local. Sem a capacidade de cognizar e compartilhar símbolos, seriam impossível criar essa realidade.


Uma vez vigente tal realidade, os indivíduos inseridos nela se tornam capazes de utilizar tanto ferramentas físicas, como utensílios domésticos, vestimentas e armas, quanto ferramentas abstratas, como as estórias e as regras. Grupos de primatas na natureza, geralmente ficam restritos a dezenas ou até centenas de indivíduos, mas a linguagem possibilitou nós humanos a nos agruparmos aos milhares. Animais sociais existem na natureza, pois: viver em grupo aumenta as chances de encontrar um parceiro sexual, diminui as chances de predação — seja por uma maior capacidade de defesa do grupo ou por mero efeito diluição — permite a manutenção de um território maior, entre outras vantagens. Mas qual o sentido de se amontoar em milhares de indivíduos, obedecendo regras e se submetendo a sacríficos artificiais? Isso só é possível graças aos nossos códigos éticos e morais, tabus, legislações, estórias, mitos, constituições, etc... Todas elas, narrativas produzidas através do compartilhamento dos símbolos através da linguagem.


Essas narrativas são "histórias" que explicam o mundo e justificam os sacrifícios realizados por aquele grupo de indivíduos: Porque abrir mão de conseguir o próprio sustento, para trabalhar para outra pessoa? A resposta para esse tipo de pergunta, está embutido na narrativa que compõe aquela sociedade. As narrativas normalmente fornecem explicação para eventos naturais e conflitos morais e éticos: deve-se trabalhar para, acumular algum crédito que possa trocar por outros recursos; ou, para que o "espírito" que rege as tempestades, não os fulmine com trovões e dilúvios. Cada grupo ou sociedade diferente irá compor sua própria narrativa, sempre uma tentativa de "explicar" o mundo, definir as regras daquela sociedade e delimitar suas fronteiras. Como elas surgiram justamente pela necessidade humana de conviver em grandes grupos, sua principal função é manter a ordem e coesão, e como existem várias explicações com múltiplas interpretações, é natural que as narrativas sejam conflitantes e determinadas pelos grupos dominantes.


Como dito, essas narrativas trazem explicações: chove, pois os céus estão premiando os agricultores pelo seu esforço; inunda, porque deus não gosta de vagabundos; a terra treme, porque os gnomos estão construindo um império subterrâneo; caem raios porque os deuses não gostam de prostitutas; etc... Elas podem ser tanto sobrenaturais quanto racionais, as primeiras correntes filosóficas naturais, por exemplo, propunham uma abordagem mais racional para entender o mundo: umas acreditavam que o mundo era dividido em elementos e que suas combinações dariam origem à tudo que existe, enquanto outras acreditavam na existência de pequenas partículas fundamentais... Entre concepções religiosas ou seculares, surge o empirismo, que determina que o conhecimento depende da experiência sensorial: para se determinar a ocorrência de um evento, é preciso registrá-lo sensorialmente! Ora, uma vez registrado um fenômeno, é mais fácil determinar sua proveniência e manipular experimentos que determinem suas causas e efeitos.


A principal vantagem de uma narrativa baseada num sistema onde é possível determinar causas e efeitos corretamente, é a previsibilidade! A humanidade sempre flertou com a “previsão” do futuro, xamãs, sacerdotes, oráculos ou profetas sempre foram peças fundamentais para o planejamento. Com uma abordagem empírica, porém, surge uma capacidade real de prever fenômenos e elaborar estratégias: sai de cena as explicações fantasiosas que dão lugar às causas que podem ser trabalhadas.


Desde seu surgimento, o empirismo foi lapidado por diversas correntes filosóficas, culminando com o Método Científico, proposto por Karl Popper no século XX. Dessa forma, a ciência passa a ser além de uma narrativa racional, também uma ferramenta para a análise e verificação de narrativas. Tal ferramenta permite elaborar uma conjectura, se baseando num conhecimento empírico prévio e testar essa hipótese através de experimentos, quando uma hipótese é refutada, aquela "micronarrativa" deixa de ter validade e deve ser descartada. A refutação de diversas hipóteses — ou a consistência delas diante dos testes — geralmente reflete a solidez ou fragilidade do conhecimento (paradigma) no qual se baseiam!


Então dito de uma uma maneira simplória, a ciência é uma narrativa baseada em conhecimento empírico, uma cosmogonia com causas e efeitos conhecidos, apenas mais uma entre as milhares de narrativas humanas. A ciência também é um gerador, uma ferramenta capaz de testar causas e efeitos de fenômenos e gerar modelos preditivos, a partir dos quais uma narrativa é de fato formulada. A grande diferença da ciência para as outras narrativas, é que ela é fundamentada em paradigmas: modelos de narrativas empíricos que explicam algum fenômeno e de onde possam ser extraídas hipóteses a serem testadas. Se um paradigma começa a apresentar falhas em explicar o mundo, a tendência é que ele seja substituído por outro — para compreender melhor como funcionam os paradigmas, vale a leitura de A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn. As narrativas não científicas por outro lado, são fundamentadas em dogmas, explicações não empíricas que devem ser aceitas como são, e quando um dogma falha em explicar o mundo, a narrativa pode ser tornar obsoleta ou simplesmente ser aceita cegamente.


Ainda que a sociedade tenda a acreditar naquilo que é mais conveniente, a ciência se tornou difundida globalmente e utilizada de uma forma ou outra em todas os lugares do planeta. Isso foi possível pela maneira que a ciência funciona em relação as outras narrativas, em suma, a capacidade de previsão é uma ferramenta poderosa demais para descartada: imagine diferentes grupos lidando com uma doença. Um grupo acredita que o fenômeno pode ser contido por orações, outro acredita que isso só é possível com sacrifícios, uma outra narrativa até entende a importância de isolar os infectados, mas não compreende a existência de microrganismos e por fim, uma que determinou corretamente as causas e efeitos da doença, e consegue colocar em prática protocolos específicos para contornar o problema. A sobrevivência desse quarto grupo seria maior do que a dos outros e nas próximas gerações os indivíduos utilizando a narrativa que funcionou seriam maioria. De uma maneira bem prática, é uma questão de resolver problemas, narrativas que apresentam a solução para algum problema tendem a serem mais utilizadas e difundidas do que as que não resolvem problemas nenhum — embora isso não seja tão intuitivo, narrativas que não oferecem previsões ainda podem ser bastante úteis a depender do momento, basta ver como as religiões que oferecem pouca noção de planejamento, são ferramentas poderosíssimas para unir combatentes e levar os soldados para a guerra.


A ciência tem suas limitações e se desenvolve num ritmo próprio, bons modelos preditivos podem surgir repentinamente e dispararem diversos avanços tecnológicos, mas tempos de estagnação e falta de respostas são bastante comuns. Desde que foi postulada, a mecânica de Newton explicava bem alguns fenômenos e produzia muitos modelos preditivos a cerca do movimento dos objetos, mas era incapaz de explicar como a gravidade funcionava de fato. À ela se sucederam os dois grandes paradigmas da física moderna, a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica, que são conflitantes e não há uma previsão de quando uma nova narrativa irá surgir para unificá-los ou substituí-los, porém ambos coexistem porque explicam muito bem os fenômenos dentro de seus campos e fornecem um alto poder de previsão. Outras áreas da ciência, no entanto, são mais problemáticas: a ecologia, por exemplo, utiliza o método científico para gerar narrativas, porém ao violar premissas fundamentais, até consegue explicar fenômenos mas não tem uma boa capacidade de previsão, o que faz com que alguns filósofos da ciência coloquem seu status científico em cheque.


O que chamamos de ciência hoje, é essa narrativa empírica centrada em uma ferramenta sólida e que depende de premissas e regras específicas para ser utilizada. O poder de previsão do Método Científico é sedutor, porém aplicar o método científico sem respeitar suas premissas pode ser bastante perigoso. Durante o século XX, vimos várias tentativas de separar as pessoas segundo "critérios científicos", tentando determinar quais gêneros ou raças eram mais inteligentes ou menos propensas a cometer crimes, uma prática perigosa que Stephen Jay Gould destrincha no seu livro A Falsa Medida do Homem, abordagens que criaram diversas práticas sem confirmação, como os malfadados testes de QI e justificativas para narrativas racistas e eugenistas. Ainda no século XX, num dos maiores exemplos de como o método científico pode ser distorcido e manipulado para obter conclusões a priori, a União Soviética apoiou a narrativa anticientífica do geneticista Trofim Lysenko, que culminou na perseguição dos maiores geneticistas soviéticos e no atraso de décadas de pesquisas — alguns historiadores sugerem, que tal doutrina foi um catalizador para as grandes fomes pelas quais passaram URSS e China.


O método científico é bem definido e por isso não pode ser aplicado indiscriminadamente, mas isso não impede a existência de narrativas empíricas sem o rigor do método embora nesse caso com menor poder de previsão. Do ponto de partida do pensamento racional e empírico, até a utilização correta do Método Científico, temos um gradiente onde diversas narrativas humanas podem ser compreendidas. Isso fica bastante claro na psicologia, que passou de narrativas fantasiosas — a psicanálise de Freud ainda é aplicada até hoje — para narrativas embasadas em fatos, que contabilizam dados e se utilizam de abordagens estatísticas para detectar fenômenos. Essas narrativas, aliadas ao método científico de outras áreas (a farmacologia por exemplo) tem tido uma maior eficácia para lidar com doenças do que há um século atrás por exemplo.


As narrativas são essenciais para a existência da civilização humana, sem elas seríamos um grupo de primatas qualquer, em quase nada diferente dos outros. A narrativa científica especificamente é poderosa graças ao seu poder de previsão, mas nem todas as narrativas são capazes baseadas na ciência. As constituições que regem os países, os direitos humanos, os valores ocidentais e orientais, nossos códigos éticos e morais, e tudo o mais, são compostos por uma colcha de retalhos de narrativas que vão desde religiosas até propriamente ditas empíricas. Nós somos macacos que sabemos contar e nos lembrar das histórias e utilizamo-las para urdir as fronteiras da nossa realidade.


Desde que o primeiro de nós tomou consciência de seu ser, narrar o mundo se tornou vital e nomear todas as coisas foi seguido por explicá-las, afinal era preciso justificar suas existências. Para manter o controle do fogo e de outras ferramentas, era preciso legitimá-las com o uso da linguagem. Esse novo macaco se espalhou, as línguas se diversificaram e com elas os costumes e as próprias narrativas. Para explorar novos recursos e novas ferramentas, novas narrativas foram criadas, alianças forjadas e guerras foram travadas. A espécie conquistou o mundo com suas histórias e o avanço do conhecimento e o refinamento das narrativas, deu ao homem a capacidade de prever o futuro, mas também a falsa ilusão de ser capaz de fazê-lo...



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