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Quantos Existem Dentro de Nós?

  • Foto do escritor: Italo Aleixo
    Italo Aleixo
  • há 9 minutos
  • 8 min de leitura

Se há algo em que todos os seres humanos concordam é na convicção de sua própria existência! Somos entidades com vontade própria e percebemos essa vontade como algo a parte — ao contrário dos órgãos e outras partes dos corpo. Esse algo, que chamamos de consciência, foi, desde sempre, objeto de interesse do conhecimento humano: todas as civilizações compuseram mitos sobre ele, as religiões tentam lhe dar sentido, os filósofos tentam compreendê-lo de maneira sistematizada e os cientistas tentam encontrar onde ele se situa. É o cogito de René Descartes — presente na afirmação afirmação lógica "Penso, logo existo (Cogito ergo sum) — é a alma dos cristãos, e tantos outros espíritos ou entidades metafísicas.


Mesmo hoje, pouco avançamos em sua compreensão, mas poucos acreditam de ela que seja algo palpável e mensurável. Sabemos, ao menos, que é o cérebro que intermedia sua existência, afinal nos neurônios são realizadas todas as faculdades mentais que conhecemos, mas a possibilidade de encontrar a consciência isolada dentro de algum órgão específico não é mais levada a sério. A ausência de uma origem ou localização específicas deixa no ar indagações: essa entidade misteriosa existe? Ela é relegada ao indivíduo, a priori, ou é construída ao longo da vida? O mais provável é que a consciência seja apenas uma percepção virtual da realidade, modulada pela linguagem!


Se no passado a alma era relegada apenas aos humanos e nem sempre a todos eles — ela já foi negada aos "povos primitivos", como negros e indígenas, por exploradores detentores de uma visão etnocêntrica utilizada para justificar a exploração e escravidão — hoje sabemos a consciência está presente em praticamente qualquer ser vivo. É fácil perceber traços de consciência, especialmente nos mamíferos e aves — onde algumas espécies tem uma noção bem evidente do eu, podendo diferenciar seu próprio reflexo do de outros indivíduos, por exemplo. Porém, como não temos nenhuma outra noção do que seja a consciência — senão nossa própria experiência individual — é inevitável projetar essa única referência em outros seres.


Mas se tem uma coisa que diferencia categoricamente a nossa consciência da de outros indivíduos é a linguagem. A capacidade de criar símbolos e dar vida à entidades abstratas, associando-as à signos verbais ou orais, nos permitiu criar toda uma nova realidade que transcende a realidade objetiva. Nossa consciência também é fruto direto dessa capacidade, ao nomeá-la com uma palavra (ou símbolo) criamos automaticamente um objeto virtual. O que quer que consideremos que seja a alma, ela é expressa pelo uso da linguagem, tente imaginar à si mesmo, nesse momento, sem o uso de palavras, e você não conseguirá fazê-lo! Essa percepção não é nada recente, pelo contrário, ela é o cerne da consciência humana e a base para quase toda religião.


"In principio erat Verbum"...


... é a frase que abre o Evangelho de São João. Verbo deriva do grego Logos (λόγος), termo com diversos sentidos, que faz referência tanto à palavra falada propriamente dita, quanto ao discurso lógico ou ao princípio que norteia o cosmos. De uma forma geral, a maioria das narrativas, religiões e outras formas de pensamento, acreditam que foi a palavra (linguagem) que criou a realidade que conhecemos. Essa noção está presente em quase todas as culturas, nos textos védicos — os textos religiosos mais antigos que temos conhecimento — a palavra (Vãc) e a mente (Manas), surgem como princípios fundadores da realidade. As vezes personificados como deuses opositores, outras vezes como um casal, Vãc e Manas disputam entre si — hora guerreando e hora se casando — a primazia, sempre debatendo qual veio primeiro. Nos Vedas Manas surge na maioria das vezes primordial à Vãc, mas na cultura ocidental essa ordem se inverte.


Saber o que veio primeiro, é a parábola do "ovo e da galinha" primordial. A questão é que como damos sentido e ordem ao mundo por meio da linguagem, o mais provável é que seja a linguagem que criou a noção de consciência que nós temos — vale ressaltar que só temos nossa consciência individual como referência — então, a partir do momento em que a primeira pessoa dotada da linguagem, pensou em si mesma utilizando símbolos, o cogito surgiu. A consciência é a maneira como percebemos o mundo real, e esse Eu tão especial pode ser apenas uma impressão.


Todos os seres vivos interagem com o mundo e para tanto tem alguma percepção dele, assim posto, todos têm uma consciência, mas só quando nomeada com algum símbolo (Eu), é que ela surge como algo apartado do indivíduo. Nós usamos a linguagem para produzir entidades abstratas: noções de igualdade, bem e mal, justiça e injustiça, desejos, etc. não são fins por si só, são valores que nós criamos com os símbolos. Dessa forma, o nosso eu é uma ilusão criada pelo somatório de nossas experiências, somadas à esses objetos erigidos pela linguagem.


A Alma é uma Folha em Branco, Preenchida pelas nossas Experiências.


Se o self é fruto de nossas experiências, então a alma não nasce com a gente mas é construída ao longo da vida. É o que postula o filósofo Thomas Metzinger: não existe um self substancial mas sim uma construção mental criada pelos processos neurais. De uma maneira simplista, a alma surge no momento em que nascemos ou mesmo pouco antes — os bebês ainda no útero já têm noções subjetivas de calor, sons e saciedade. E partir desse momento, começamos a experimentar a realidade através dos sentidos e armazenar essas experiências na memória.


A relação entre a consciência e a memória, é reforçada num artigo publicado em 2007, onde o neurocientista, Demis Hassabis, mostrou que dependemos de nossa memória episódica para imaginar novas experiências — foi a partir desse conhecimento que o próprio Hassabis começou a "treinar" inteligências artificiais. Tudo que pensamos, desejamos, ansiamos, depende daquilo que já está armazenado em nossa memória, é preciso experimentar antes de almejar.


Quantos Existem Dentro de Nós?



Se a consciência é antes de algo substancial, um somatório de processos, ela pode ser fracionada. Embora a maioria das religiões considerem à consciência como algo monolítico e indivisível, há tempos que filósofos e psicólogos concordam de que ela é composta de vários "pedaços". Todos temos uma noção, mesmo que superficial, de que possuímos um eu interior diferente daquele que mostramos para a sociedade, nossos comportamentos, desejos e pensamentos, mudam dependendo de quem os presencia. Nietzsche discorre que quando tentamos olhar para dentro de nós mesmo, sempre percebemos uma porção da consciência escondida em camadas mais profundas. Em concordância com o filósofo alemão, filosofias antigas, como os Vedas, narram mitos sobre uma entidade (pupila), sendo observada de volta quando olha para dentro de si mesma, e pensamentos mais modernos, como a psicanálise, dividem a consciência em Id, Ego e Superego.


Da mesma maneira que não podemos delimitar a consciência como algo fixo, também não conseguimos contabilizar suas potenciais divisões. Se a consciência é apenas uma impressão formada pela junção de memórias episódicas com a imaginação, então à depender da capacidade de processamento do cérebro, ela pode ser dividida em quantas forem possíveis. Mas e se fosse possível separar essas consciências, isolando da memória as lembranças que uma tem das outras? A evidência mais clara que temos dessa possibilidade, vem de patologias, onde pacientes com transtornos dissociativos, esquizofrenias ou mesmo Alzheimer, podem apresentar literalmente múltiplas personalidades.


"Quem é Você?" - Severance, Season 01

Além das subdivisões internas, ao longo de nossa existência nós também produzimos personalidades diferentes — seu eu da infância é completamente diferente do seu eu adulto, mas todos estão interligados por um continuum temporal. E se fosse possível separá-las umas das outras? Este é o enredo da excelente série: Ruptura (Severance, HBO), ficção científica que tem atraído atenção generalizada do público.


Na série, os personagens não retém memórias do trabalho — possibilidade alcançada graças a um procedimento cirúrgico — eles estão empregados mas não se lembram do que fazem e nesse meio tempo, surge um self que existe apenas dentro do trabalho. Como uma consciência não tem memória alguma sobre a outra, temos a existência de duas pessoas distintas: o externo, que vive a vida sem "nunca trabalhar" e o interno, que só existe dentro dos escritórios da empresa durante o expediente.


Embora compartilhem o mesmo corpo é inevitável que essas entidades distintas, tenham valores e ambições diferentes, então, quem manda em quem? É com um simples e direto "Quem é você?" que o espectador é introduzido na série que, além de todo mistério e estranheza, traz uma divagação filosófica potente: se a consciência é formada por memórias, quantas "almas" existem num corpo se essas memórias estão particionadas? Se os externos aceitam fazer o processo de Ruptura, para esquecer dos problemas ou superarem traumas, quais reconhecimentos legais teriam os internos que são criados à parte?


Ruptura se assemelha bastante as melhores obras de Philip K. Dick, lenda do Scifi e mestre em discutir a natureza da consciência e o impacto da tecnologia na realidade. Assim como em Dick, os debates filosóficos de Ruptura disputam espaço com uma estética bastante elaborada, minunciosamente pensada para compor a mitologia da Lumon — empresa onde "vivem" os internos. Assim como nós dependemos de narrativas que organizem a realidade, onde os mitos sempre desempenharam papel importante, os internos, carentes de um passado, precisam mais do que nunca de uma mitologia que justifique sua existência: a cosmogonia da Lumon é regada de uma ambientação austera, com detalhes pontuais, numa atmosfera de muito mistério e com ares religiosos, com direito à lendas, mandamentos próprios e à um próprio profeta.


A construção dos debates filosóficos da série — quem é você? qual consciência tem direito sobre a outra? — são tão bons que geram uma angústia palpável no espectador: são perguntas sem respostas! Isso fica evidente no clímax da série, num embate angustiante entre interno e externo, ambos buscando cooperação por objetivos completamente opostos. A trama cria problemáticas que nunca poderão ser resolvidas de forma satisfatória: a saída seria a morte de uma consciência? Se sim, de qual? A junção dessas consciências é impossível já que a alma não é atrelada à um corpo, como diz o senso comum, mas sim à experiência. Se um mesmo corpo vivenciou experiências distintas, ele não é mais um só — e aqui entende-se como vivenciar, memorizá-las.


A noção de que a consciência seja apenas uma impressão virtual baseada nas memórias, traz implicações sombrias, como a ruptura propriamente dita mas também a possibilidade de copiar as memórias de alguém e simular a consciência em um outro corpo (ou máquina). No universo de Dick, diversas obras discutem consciências simuladas a partir de memórias — como clones, ou pessoas que já morreram mas permanecem num estado de suspensão podendo ser contatadas através da tecnologia. Alinhada com a obra de Dick, temos a excelente Black Mirror, antologia que discute como a tecnologia pode impactar a natureza humana — a própria Ruptura parece um episódio saído de Black Mirror. Alguns episódios da série — como "San Junipero" e "White Christmas" — discutem exatamente essa ideia de consciências simuladas.


A ficção científica estica ao máximo os limites do possível para simular situações que nos ajudam a compreender melhor a natureza da realidade. "O que nós somos?" é a pergunta fundamental que nos acompanha desde nosso surgimento enquanto espécie. Para responder à isso ou nós afundamos nas brumas da metafísica ou nos desfazemos na esterilidade da razão. O que realmente importa é que somos alguma coisa, como bem concluiu Descartes, só não devemos ter a pompa de nos sentir tão especiais. Se a alma é uma folha em branco preenchida com a experiência, significa que nossos prazeres e hobbies são muito mais essenciais para a construção da nossa consciência do que a importância que normalmente lhes damos. E fica no ar um questionamento: se a alma é apenas uma impressão virtual criada pelo cérebro, porque qualquer outro tipo de simulação baseada em experiências não podem ser real?

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