top of page

O Ardor

  • Foto do escritor: Italo Aleixo
    Italo Aleixo
  • 19 de jul.
  • 5 min de leitura
ree

Todo aquele que se considera um leitor deve, em algum momento, ter se encantando pelas mitologias. Criaturas lendárias, heróis e batalhas míticas que compõe o imaginário de civilizações antigas, além de um combustível para jovens leitores ávidos por aventura, são mitos fundadores e foram sistemas de pensamento completos hoje defasados e perdidos no cemitério das lendas.


O material para quem gosta desse tipo de leitura é vasto e é muito fácil encontrar textos em domínio público de tudo quanto é tipo de mitologia. Quem gosta desse tipo de leitura, já deve ter lidado com um certo cansaço ao ler coletâneas de mitos: diferente de romances de de fantasia ou poemas épicos, eles não tem um compromisso narrativo, muitas vezes são apenas eventos surreais que se sobrepõe sem muito sentido, simbolizando tabus, morais ou são simplesmente estranhos mesmo. Mas para além de contos de fada, o que os mitos dizem sobre aqueles que os conceberam?


O leitor que põe a mão numa coletânea de mitos — tomemos a mitologia nórdica por exemplo — antes de se maravilhar com as aventuras de Thor ou as trapaças de Loki, já se perguntou como aquelas pessoas reagiam e interpretavam a realidade? Os mitos não são apenas contos da carochinha ou aspirações poéticas, eles são de fato uma tentativa de explicar o mundo, cada mito ou lenda é uma interpretação direta da realidade. Em O Ardor, Roberto Calasso mergulha na mitologia dos Vedas tentando entender quem foi esse povo que não deixou marcas históricas senão os seus textos — que estão entre os mais antigos textos humanos que se tem registro!


Quem foram aqueles que não construíram nada, não deixaram ruínas, não demarcaram fronteiras, não desenharam mapas, ou construíram objetos que constituíssem uma memorabília? A única coisa que restou dos povos védicos foram textos sagrados — oriundos de uma tradição oral que pode anteceder em milênios os próprios textos — com regras minuciosas orientado rituais e sacrifícios. Calasso, cuja obra é reconhecida pelas divagações sobre o papel do mito no mundo moderno, tece esse ensaio literário à respeito desses textos. Num tipo de engenharia reversa, Calasso usa os Vedas para tentar entender como a Civilização Védica via o mundo.


A escrita de Calasso é bastante hermética e um tanto confusa. O leitor de O Ardor não irá encontrar uma coletânea de mitos, mas será lançado diretamente numa discussão prolixa repleta de inferências filosóficas. Complexo, mas é essa a maneira que o autor encontra para discutir uma filosofia que não mais existe e que sequer foi registrada — senão em mitos "sem sentido". Mitos que lançam areia no caldo do progresso, outro mito por si só, que encerra a ideia de que temos hoje, uma percepção do mundo superior à das civilizações antigas.


"Se se perguntasse aos homens védicos porque não fundaram cidades, nem reinos, nem impérios, poderiam ter respondido que não buscavam o poder, mas sim a embriaguez."

Se no princípio parece estranho um povo ser tão dedicado ao sacrifício em detrimento da construção de uma memória, é durante o lodaçal verborrágico de Calasso, que vamos percebendo que seu pensamento estava muito alinhado com as noções do mundo moderno, mas com foco no espírito e na natureza da consciência.


Regras sobre o sacrifício e a relação dos homens com os outros animais, por exemplo, evocam a evolução e ecoam a eterna inquietação de nos sentirmos tão apartados do mundo real. Os védicos creram que os animais em algum momento andaram sobre duas patas como nós, mas se renderam à forma quadrúpede como submissão ao sacrifício — ficavam sobre quatro patas quando presos à estaca sacrificial. Num outro mito, a pele do homem foi colocada na vaca para que ela pudesse suportar a chuva, o frio e o calor, e por conta disso o homem agora precisa usar roupas para substituir a proteção que perdeu. Estórias que a princípio parecem ingênuas, encerram explicações para dilemas ainda hoje insolúveis.


Uma outra crença que sugere a existência de dois pássaros, um que come o mundo e outro que apenas observa e que compõe a mente (são o Ãtman (Si) e o Aham (Eu)), já sugerem, desde aqueles tempos, uma visão de que a consciência não seria uma unidade indivisível.


"(Purusa) Olhando ao redor não viu nada além de Si. E como primeira coisa disse: Eu sou."

Essa entidade, a pupila, sendo observada de volta quando olha para dentro de si mesma é a consciência divisível e que surge após ser nomeada por uma palavra, uma visão filosófica bastante moderna. A própria importância da linguagem para a consciência, tema tão recorrente no pensamento ocidental, também tem seu lugar nos Vedas, já que a Vãc (palavra) e Manas (mente) são deuses fundadores da realidade e que disputam a primazia, sobre quem antecedeu quem. Nos Vedas, na maioria das vezes, Manas é primordial à Vãc, mas na cultura ocidental essa ordem se inverte. Os védicos não ficariam para trás numa conversa com Kant, Nietsche ou Freud. Para os védicos praticamente tudo se resume ao ritual, modo de pensar que já detém em si uma visão entrópica da natureza — com toda uma mitologia a respeito dos resíduos criados pelo sacrifício e o que é sacrificial ou não é — resultado de uma inquietação ética e moral universal.


O Ardor é complexo, já que o autor não é bom em explicar mas sim em discorrer sobre os mais variados assuntos. A organização do livro também é relativamente confusa, já que dois capítulos em especial concluem a obra, mas não são sequenciais. É no capítulo Tiki, que Calasso propõe aquilo que seria uma conclusão para O Ardor. Num dos únicos capítulos que não falam sobre os Vedas o autor relembra o pensamento de Marcel Mauss e seu grande impacto na mudança de paradigma da antropologia no século XX: quando a visão progressista, segundo a qual civilizações primitivas evoluiriam gradualmente e os mitos e crenças seriam equívocos do indivíduo, foi substituída pela ideia de que os mitos não se originam mais no indivíduo, mas sim nas interações sociais. Sob essa óptica não existem civilizações primitivas, apenas diferentes propostas para explicar o mundo.


Na conclusão do livro, Calasso traz a sua, sempre presente, crítica ao mundo moderno: nós, indivíduos da sociedade secular, nos afastamos dos pensamento mitológicos, mas nunca deixamos de produzir mitos — parece que é impossível para o cérebro humano considerar a realidade de outra forma — então continuamos produzindo símbolos e mitos mas perdemos a conexão com o significado. Nós, habitantes do mundo moderno, eliminamos o Telos das narrativas, mas ainda perseguimos um sentido em tudo o que produzimos.


Um livro difícil de ler — ainda mais porque o autor não deixa claro o que está discutindo, nem com base em quê — mas que resgata a visão de mundo dos védicos e de como lidavam com a realidade. Numa hipotética encruzilhada sobre o modo de pesar, a maioria das civilizações desenvolveram pensamentos utilitaristas e uma profunda preocupação com o mundo físico, tentando à todo custo se perpetuar através de objetos e símbolos. Os védicos por outro lado se voltaram para o mundo interior, para a natureza da consciência, buscando um meio de se perderem dentro de si mesmos e ("talvez") se fundir com uma consciência coletiva, eles buscavam a embriaguez!

Comments


© 2023 por Meras Literatices. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Branca Ícone Instagram
bottom of page