Ficções
- Italo Aleixo
- há 23 horas
- 7 min de leitura

Quando li Ficções pela primeira vez, alguns anos atrás, eu fiquei encantado pela atmosfera fantástica e sua criatividade. De volta ao livro alguns anos depois, a obra soa ainda melhor, pois agora consigo perceber a filosofia por trás dos contos. Se durante o processo de pensar, um filósofo debate e descarta várias narrativas, em busca da verdade ideal, Borges é aquela criança curiosa, que faz questão de dar vida à essas ontologias inconclusas para ver como se parecem.
Jorge Luis Borges é um dos mais influentes autores da América do Sul e um dos precursores da fantasia latino-americana. No entanto, seu fantástico difere daquele realismo fantástico que imortalizou Gabriel Garcia Marquez, como uma visão de mundo do povo latino, e é mais influenciado pelo pensamento europeu e filosofias pós-iluministas. Borges é o expoente de um estilo de escrita que se vale de divagações e becos sem saída filosóficos, para criar suas histórias — hoje em dia podemos citar Ted Chiang como um nome de destaque desse estilo. A perda de prestígio da razão como um espelho confiável para a realidade, o idealismo de George Berkeley, os paradoxos filosóficos e as noções de tempo e infinito implodidas pela cosmologia moderna, tudo isso é terreno fértil para seus contos.
É impossível fazer uma resenha de Ficções sem falar individualmente de pelo menos alguns de seus contos. A narrativa Borgiana tem uma identidade marcante baseada numa estética e temática bem definidas. Locais lúgubres, celas escuras, corredores infinitos, bibliotecas e labirintos, são alguns dos cenários usados para refletir sobre: a linearidade do tempo, a história, a memória, o infinito e claro, os livros.
É indiscutível a fama de Borges como bibliófilo e a maneira como ele fala dos livros é uma declaração desse amor, ao ponto que as vezes prefere falar sobre eles do que escrevê-los propriamente dito:
"Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma ideia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e apresentar um resumo, um comentário." - Jorge Luis Borges
De maneira similar ao que o cinema faz com as biografias fictícias — O Grande Gatsby, O Brutalista, Tár, Cidadão Kane, etc. — Borges adora tecer críticas literárias sobre livros que não existem. Em A Aproximação a Almotásim conhecemos um livro que narra a jornada de um estudante em busca de alguém específico e vemos como o sentido original se perde tradução após tradução: se na obra original a busca era por um sentido, em outras vira uma busca por si mesmo, ou por um deus, ou pelo deus cristão especificamente. Já em Pierre Menard, Autor do Quixote um escritor tenta reescrever Don Quixote da própria memória, mas mesmo que o livro resultante seja igual, o sentido da obra é diferente uma vez que os autores viveram em séculos diferentes. Nesses contos, Borges está discutindo a ideia que o sentido de um texto não está contido apenas nele em si, mas depende de todo um contexto que envolve a obra e o leitor. Entre alguns outros contos sobre livros fictícios, um merece destaque especial:
Tlön, Uqbar, Orbis Tertius começa com a reflexão de que os espelhos e as cópulas são abomináveis porque multiplicam a realidade — se a realidade objetiva é uma só como ela pode ser multiplicada? Tal afirmação parece estar contida nas enciclopédias, no artigo sobre Uqbar, mas ao ser realizada uma pesquisa, descobre-se que tal artigo não existe. Quando algumas páginas extras sobre Uqbar são enfim descobertas, é uma questão de tempo até que comecem surgir novas páginas e logo volumes inteiros. Em Uqbar — seria um país ou um planeta ? — todos são idealistas: para eles o mundo não é composto por objetos independentes no espaço mas sim de atos independentes. Consequentemente em seus idiomas não existem substantivos, apenas verbos ou adjetivos e não existe uma realidade objetiva de fato.
Para entender a fantasia presente no conto é preciso recorrer a filosofia de George Berkeley, que nega a existência da matéria como substância independente. De acordo com o filósofo, algo só existe quando é observado por alguém e dessa forma, a realidade é moldada pela experiência. No conto, Borges imagina como se daria de fato tal realidade, com coisas que não existem independentemente no espaço nem no tempo: existe apenas um presente moldado, o futuro não é determinado e o passado pode se transformar com a força do pensamento.
O argumento mais interessante do conto, se dá na presença de um paradoxo proposto por um filósofo materialista de Uqbar, que propõe que: se alguém perdesse umas moedas, que fossem encontradas por outras pessoas, isso justificaria a existência das moedas independente de um observador. Ao que os filósofos de Uqbar respondem: se outras pessoas encontraram essas moedas, elas são moedas diferentes que existem na mente de cada observador. Isso se manifesta na realidade de Uqbar com os hrön, objetos cuja existência é especulada por diferentes observadores e podem ser encontrados independentemente por cada pessoa, é a criação da realidade pela mente. Em casos mais extremos, os ur são objetos produzidos pela mera sugestão. O clímax do conto é com cada vez mais volumes sobre Uqbar surgindo e aos poucos substituindo nossa própria realidade.
Seguindo o mesmo princípio filosófico, outro conto que transborda charme é As Ruínas Circulares. Nele um sábio se propõe a gerar a realidade a partir dos próprios sonhos. Após o pacto com uma entidade, ele começa uma jornada de auto descobrimento e meditação visando desenvolver a capacidade de sonhar e controlar esses sonhos, o objetivo final: sonhar com uma criatura de maneira tão perfeita, ao passo que ela passe existir na realidade!
Borges também brinca com as fragilidades da história. Muito já se debateu sobre a história ser mais uma teia interligada de eventos caóticos do que uma cadeia de eventos lineares. Borges reflete como o passado que conhecemos pode ser apenas uma construção a mercê da vontade daqueles que o narraram. Em A Forma da Espada, Tema do Traidor e do Herói, e Três Versões de Judas o autor mostra como o passado pode ser artificial e enganoso.
Dentro dessa esfera, o conto mais interessante é a A Loteria em Babilônia, onde uma empresa começa uma loteria onde existem bilhetes com prêmios e com penalidades. Tal sistema é um sucesso retumbante e logo todas as pessoas estão participando. Os prêmios podem chegar à realização de qualquer desejo, enquanto as penalidades podem chegar à pena capital. Logo esses desejos podem ser usados para adiar ou cancelar penas, ou até mesmo para penalizar, a empresa ganha então ares míticos e um caráter metafísico. Com o passar dos séculos acredita-se que todos os acontecimentos são resultados da loteria, sempre intrincados, complexos e irrastreáveis. É uma repaginação da Roda da Fortuna, conceito romano e muito difundido na filosofia medieval, que simboliza a imprevisibilidade da sorte, uma analogia para os caprichos do destino.
Se não podemos confiar na história porque a memória pode ser enganosa, um personagem de Borges seria mais difícil de ser passado para trás: Funes, O Memorioso, é atormentado por todas as lembranças que já experimentou, já que perdeu a capacidade de apagar qualquer coisa que seja da memória. Se nossa consciência é formada por uma memória dinâmica em constante reconstrução, Funes é um tumulto de vozes se lembrando de tudo a cada momento e ao mesmo tempo — Borges diz que o conto é uma metáfora para a insônia.
Outro conceito que perdeu sua rigidez na filosofia foi o tempo, que se tornou relativo ao ponto de não ser necessariamente linear e nem de ser igual para cada indivíduo. Em O Milagre Secreto um condenado ao fuzilamento pede a Deus tempo extra para terminar sua obra. Tal barganha lhe é concedida, mas todo o tempo ganho se passa dentro da consciência do personagem. Em termos objetivos, dura apenas o tempo que as balas levam para percorrer seu trajeto mortal.
Entre outras conceitos que perderam sua rigidez, temos o infinito. Borges discute tal grandiosidade usando-se de seu objeto de adoração, as bibliotecas, naquele que é talvez o melhor conto do autor: A Biblioteca de Babel. Ninguém sabe o tamanho da biblioteca, apenas que suas estantes estão organizadas em corredores que se estendem "infinitamente" para os lados e para os andares inferiores e superiores. As pessoas nascem e morrem dentro da biblioteca, cujos corpos insepultos são apenas lançados nos abismos sem fim dos vãos. Todos os livros tem o mesmo tamanho e a mesma quantidade de caracteres e são compostos apenas por 22 caracteres, pontos e vírgulas.
Os filósofos discutem durante séculos o objetivo da biblioteca, ou qual o conteúdo dos livros (a maioria sem sentido nenhum), até que se postula, que a biblioteca contém todos os livros com todas as combinações possíveis de caracteres! Logo pululam conjecturas sobre todos os livros que contém todos os mistérios e segredos do universo — diferentes entre si por apenas um ou outro caractere — tanto quanto todas as histórias do futuro, perdidos em meio à todos os livros sem nenhum significado ou entre aqueles que contém todas as mentiras. Surgem grupos que buscam incessantemente respostas sobre a vida e o futuro, tanto quanto surgem grupos empenhados em destruir todos os livros.
Aqui Borges discute magistralmente os paradoxos envolvendo o infinito — mesmo que sua biblioteca não seja infinita. Se o universo é composto de um número conhecido de elementos químicos, caso a matéria fosse infinita, obrigatoriamente tudo que existe precisaria ser replicado da mesma maneira.
É difícil fazer uma resenha geral sem querer parar e comentar conto por conto, sem querer divagar as possibilidades que cada história dessa encerra em si. Sempre que me pego pensando a respeito dos contos eu acabo voltando à brilhante afirmação de Julio Cortázar que diz que num embate entre os textos, o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute. Aí mora a genialidade dos contistas, expressar universos inteiros em tão poucas palavras!
Comentários