top of page

Meridiano de Sangue

  • Foto do escritor: Italo Aleixo
    Italo Aleixo
  • 5 de mar. de 2024
  • 4 min de leitura

Meridiano de Sangue é uma fábula sem objetivo e sem moral, uma odisseia na qual os personagens vivem e morrem pela lei da bala. Nenhum deles está lá para apresentar sua ideologia ou sequer têm a oportunidade de divagar sobre o rumo da história, todos simplesmente jogam com as cartas que tem em mãos, uma partida onde não existe o certo ou o errado mas, apenas a lei do mais forte.


Cormac McCarthy é considerado um dos maiores romancistas norte americanos e viu algumas de suas obras adaptadas para o cinema Todos Os Belos Cavalos, Child of God e os aclamados, A Estrada e o vencedor do Oscar, Onde os Velhos Não Tem Vez. O autor é um dos expoentes da safra "neo western" se é que tal gênero exista oficialmente — que seria baseado no rompimento com os clichês do western clássico. O gênero que outrora presava a aventura e romantizava a expansão norte americana, traçando linhas bem definidas entre mocinhos e bandidos, nas últimas décadas se tornou mais sóbrio e realista, imergiu em tons de cinza, teceu seus próprios discursos críticos e passou a tratar da existência do homem nessas paragens regidas pela violência.


Em Meridiano de Sangue somos apresentados à um personagem sem nome, o Kid, nascido de uma mãe morta e nunca batizado pelo pai, conhece desde cedo a violência e nenhum futuro melhor lhe é apresentado, amaldiçoado por tal sina, abandona seu passado e parte sozinho numa jornada sem rumo e sem desfecho. Durante a jornada, encontra e é alistado pelo o bando de John Joel Glanton: personalidade histórica que liderou grupos de mercenários, contratados pelas autoridades para assassinar e reclamar escalpos dos Apaches.


Aqui não temos um único personagem principal: o Kid, estoico e de poucas palavras, está disposto à qualquer coisa para completar as missões que lhe caibam, como um bom soldado, não lhe cabe divagar a própria existência nem mesmo em ser o protagonista; divide com ele esse papel, o próprio Jhon Glanton, líder sanguinário e genial, homem de poucas palavras e disposto a tudo em nome do dinheiro inclusive retirar escalpos de qualquer pessoa na ausência de um índio; e o mais notável e misterioso personagem do livro, conhecido apenas como O Juiz, uma figura sem passado ou renome, que surge e desaparece ao seu próprio bel-prazer, com direito a feitos fantásticos como fabricar munição praticamente do nada no meio do deserto.


Além da obra portentosa, os personagens de Meridiano de Sangue representam por si só arquétipos universais. O Kid é o típico homem médio, motor da civilização, sem aspirações ou sonhos, apenas apto a executar o que a história exige de si. Jhon Glanton é uma amostra de que muitos dos heróis que nós admiramos hoje em dia, só perduraram porque escreveram seu nome pelo sangue, afinal a maldade é muito mais duradora do que qualquer bondade executada. E gosto de enxergar o Juiz como uma metáfora para a natureza humana: mal, inteligente, pragmático, “senhor” de todas as formas de vida e defende com argúcia que o objetivo do homem no mundo é fazer a Guerra, enquanto anota tudo em sua caderneta e defende que nada que Ele não tenha permitido existir e tenha contabilizado deve existir.


O livro é uma obra pesada e densa e McCarthy não preza pela sutileza, abraça a violência de tal forma que mais cedo ou mais tarde nos acostumamos à ela. O primeiro livro que li do autor foi na minha adolescência, Onde os Velhos Não Tem Vez e até hoje me lembro de como fiquei revoltado com uma trama que não tinha justiça e terminava de modo abrupto. Levei mais alguns anos para me aventurar de novo pelas páginas do autor e me apaixonar por elas. Disso se trata sua obra: esgarçar a violência como se abre uma ferida, afim de mostrar que ela faz parte da nossa história.


Uma das maiores qualidades do autor é o seu poder de descrição, sublime e etérea ao ponto de atingir uma aura mística destaque para a descrição do fogo de santelmo, que cobre o bando de Glanton como se eles fossem cavaleiros espectrais vindos de outro mundo:


"Nessa noite atravessaram uma região elétrica e selvagem onde estranhas formas de fogo azul suave dançavam acima do metal dos arreios e as rodas das carroças giravam em arcos de fogo e pequenas formas de luz azul pálida vinham pousar nas orelhas dos cavalos e nas barbas dos homens. Por toda a noite relâmpagos difusos sem origem definida estremeceram a oeste atrás das massas tempestuosas de nuvens da meia-noite, provocando um dia azulado no deserto distante, as montanhas no horizonte súbito abruptas e negras e lívidas como uma terra longínqua de alguma outra ordem cuja genuína geologia fosse não pedra mas medo. Os trovões aproximavam-se a sudoeste e raios iluminavam todo o deserto em torno deles, azul e estéril, grandes extensões estrondeantes expelidas da noite absoluta como algum reino demoníaco sendo invocado ou uma terra changeling que com a chegada do dia não deixaria mais vestígio ou fumaça ou destruição do que qualquer sonho perturbador."

A narrativa ganha ares místicos e a dissociação com a realidade é tal, que podemos considerar a obra como pós-apocalíptica — mesmo se passando no século IX. Embora desprovida de glória, a jornada efetuada pelo bando sanguinário de John Glanton é épica. No intuito de fazer do homem um mero coadjuvante perante a natureza, McCarthy pinta o México como um planeta distinto, belo e hostil: as montanhas geladas de altitudes indefinidas, os desertos de extensão infinita, as florestas tropicais, o contato com o povo estranho que habita o local, especialmente com os índios portadores de badulaques e troféus macabros retirados de suas vítimas, são praticamente paisagens de outro mundo.


As terras ermas da imensidão mexicana são uma emulação do Inferno de Dante, onde os personagens pagam pelos seus pecados com sua própria existência. Um dos maiores romances do século XX e uma espécie de ensaio sobre a solidão e a maldade humana. Cabe aos mais fortes sobreviverem, ninguém vai ajudar, ninguém vai sequer argumentar a favor do certo ou errado, porque o meridiano de sangue é uma terra onde os fracos não tem vez!

Comments


© 2023 por Meras Literatices. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Branca Ícone Instagram
bottom of page