top of page

A Travessia

  • Foto do escritor: Italo Aleixo
    Italo Aleixo
  • 8 de mar. de 2024
  • 3 min de leitura

"Aos homens sobrevive o mal que fazem, mas o bem quase sempre com seus ossos fica enterrado.


William Shakespeare, Júlio César"


Lembrar que A Travessia faz parte de uma trilogia é desnecessário, uma vez que o livro funciona muito bem isoladamente, sem ligação nenhuma com a obra que o antecede. Se em Todos os Belos Cavalos temos uma obra mais pé no chão e menos dramática, aqui estamos de volta ao estilo violento e filosófico de Meridiano de Sangue.


A trama se passa num cenário recorrente nas obras do autor: o sul dos EUA e o norte do México. É em meio à essa paisagem que ainda retém seus aspectos selvagens, que Billy Parham vive com sua família, em uma pequena propriedade rural. No dia em que Billy captura uma loba e decide levá-la de volta ao México, ele dá início à uma série de travessias da fronteira que irão mudar sua vida pra sempre.


Eu já comentei que o faroeste de McCarthy é uma vertente mais sóbria e atual do gênero. Tal "frescor" é reflexo de uma interpretação contemporânea, contrastando com o romantismo que era relegado às histórias de bang bang, e também reflete o choque cultural que se deu entre aquele estilo de vida com o mundo moderno. A modernidade cobra seu preço dos personagens, habitantes de um tempo passado que vão perdendo seu espaço no mundo, cada vez mais deslocados e ignorados pelo sistema. É nesse atrito entre anacronismo e atualidade, que McCarthy encontra terreno para desenvolver sua obra e para filosofar.


Em seu fabuloso Doze Contos Peregrinos, Gabriel García Márquez faz da Europa uma morada fria e hostil para aqueles que vivem longe de sua pátria, um mundo dotado de uma realidade estranha à qual os peregrinos têm dificuldade para se adaptar. A Travessia também é uma história sobre o drama dos forasteiros, uma vez que Billy Parham coloca os pés na estrada, ele perde para sempre sua nacionalidade e inicia um ciclo sem fim de idas e voltas, sempre muito custosas para o personagem. Compartilham da sina de Billy, outros viajantes: a loba, seu irmão Boyd, seus cavalos e outros personagens que encontram pelo caminho. Cegos, atores, ciganos, clérigos descrentes, são todos estrangeiros sem raízes num mundo que lhes ignora e portanto vagam a deriva seguindo as estradas sem saber ao certo o que procurar.


Talvez a característica mais marcante de Cormac McCarthy é o aspecto visual de sua narrativa, dotado de um grande vigor descritivo ele pinta paisagens, passagens e acontecimentos que beiram o fantástico em determinados momentos. Nesse sentido, é impossível não remeter ao clássico Meridiano de Sangue, uma vez que nos deparamos novamente, com um épico ambientado nas vastas paisagens portentosas do México. A Travessia bebe muito de suas fontes — muito mais que seu antecessor por exemplo — mas enquanto o Meridiano de Sangue é uma verdadeira jornada ao inferno, A Travessia seria uma pena no purgatório, um calvário que o protagonista Billy tem de pagar, sempre vagando no entre-fronteiras, sem entender o que está acontecendo e com direito à encontros e diálogos metafísicos com outros condenados.

Eu iniciei essa resenha com a famosa frase de Marco Antônio em Júlio César, de Shakespeare, pois afinal, A Travessia é uma grande divagação sobre a violência — um tema abordado em toda obra do autor. Alguns tratam a violência como um desvio de caráter à ser eliminado, outros a abraçam cinicamente e alguns, como McCarthy, a tratam como algo natural, idiossincrático à nossa natureza. As mazelas pelas quais Billy passa não possuem razão de ser, elas simplesmente o são. Intercalando suas aventuras, Billy se depara com outros personagens que também foram assolados pela violência e durante esses momentos, são travados diálogos e narrativas à respeito da natureza de Deus, dos homens violentos, da guerra, etc... esses momentos de calmaria, são os momentos de reflexão para os personagens e ressoam para além das páginas, é o momento em que o próprio autor ecoa questões fundamentais sobre a condição humana e nosso lugar na história.

Comments


© 2023 por Meras Literatices. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Branca Ícone Instagram
bottom of page