Comporte-se
- Italo Aleixo
- 1 de abr. de 2024
- 5 min de leitura

O que acontece em nosso corpo, segundos, minutos, horas, dias ou até mesmo séculos antes, ao decidirmos executar uma simples ação? Nós temos de fato, alguma autonomia sobre nossos atos, ou toda nossa vontade é pré-determinada fisicamente, pelos elementos que nos compõe e nos rodeiam? Seria o livre arbítrio um mero delírio? São essas as perguntas básicas que o neurobiólogo e primatologista, Robert Maurice Sapolsky, se propõe a discutir em seu livro.
Comporte-se é vasto, mas se perde um pouco na sua própria imensidão. Aqui, Sapolsky repete as mesmas abordagens, de Jared Diamond em seu clássico, Armas, Germes e Aço, ou de Yuval Noah Harari, em Sapiens: narrar a história de algum tudo sobre um ponto de vista específico. Quanto à isso não vejo maiores problemas, Sapolsky consegue construir uma obra tão monumental quanto essas pré-citadas, mas com alguns poréns...
Primeiro, é muito difícil acompanhar o tema. O livro começa com um foco na neurobiologia, mas o assunto escala de tal forma, que antes que você perceba, está navegando pelos amplos campos da genética, psicologia e até da filosofia. Embora isso não seja exatamente um problema, é complicado centrar sua concentração em como e onde atuam cada região do cérebro e de repente, precisar encarar como todo o background social interfere no comportamento de grupos décadas depois! Não é culpa da narrativa veja bem, é fácil seguir o raciocínio de Sapolsky que tenta explicar em miúdos, desde o funcionamento básico de neurônios até como certas regiões do cérebro se ativam quando você pensa tal coisa — por exemplo, a ínsula é uma região relacionada, entre outras coisas, ao comportamento alimentar, e consequentemente à sensação de nojo; a amígdala, entre outras funções, se relaciona ao medo e ansiedade, mediando nossa agressividade; e essas duas regiões do cérebro, que surgiram para lidar com necessidades basais, são também utilizadas para mediar comportamento sociais... — mas a medida que o tema avança, os hormônios entram em cena mediando essas áreas cerebrais, a genética passa a determinar estados pré-natais e logo estamos no terreno verdadeiramente movediço da psicologia. Por mais claro que Sapolsky se faça, é difícil associar exércitos rebaixando moralmente seus inimigos para manipular suas narrativas, com as funções específicas de cada região do cérebro, mencionadas rapidamente centenas de páginas antes.
O fluxo das ideias é um obstáculo menor, o grande problema de Comporte-se é o fator determinístico embutido e no que ele se baseia. Para que o livro de Sapolsky se faça pertinente, é necessário que os seus pressupostos sejam verdadeiros, ou seja, que cada elemento citado tenha de fato as funções à ele creditadas e que sempre funcionem da maneira esperada, porém ele constrói sua arguição baseado em inúmeros experimentos distintos e alguns deles, bastante nebulosos. Aqui devemos ter em mente, que o autor não esbarra numa limitação pessoal, mas sim numa dificuldade básica da própria psicologia enquanto ciência: os fenômenos causais nela estudados, são tão complexos e influenciados por fatores impossíveis de controlar, que muitos resultados encontrados por trabalhos excepcionais, são muitas vezes casos isolados que não podem ser tomados como padrão — a ecologia, convive com o mesmo tipo de problema e por isso, essas áreas de estudo têm dificuldades em descobrir leis funcionais, que rejam seus campos de conhecimento. Mesmo considerando essa dificuldade elementar, Sapolsky insiste em levar em frente sua discussão muitas vezes usando como ponto de partida esses trabalhos bastante singulares — juízes emitindo sentenças desfavoráveis quando estão com fome; pessoas que levam furacões mais a sério quando eles tem nome de homem; e pessoas que acreditam que pessoas mais bonitas tem padrões morais mais elevados, são só alguns dos exemplos — exemplos que devem passar da casa das centenas, que são específicos demais e com baixa previsibilidade para afirmar que aquilo seja um padrão real — lendo algumas críticas sobre Comporte-se na internet, também encontrei que muitos desses trabalhos não conseguiram ser replicados posteriormente. O próprio Sapolsky está ciente dessa limitação, mas não abre mão de usar essas evidências tão pertinentes aos seus objetivos, ele chega mesmo a glorificar o resultado de diversos autores, mesmo citando uma avalanche de refutações que receberam, sem abrir mão de tecer conclusões baseadas nesses trabalhos. Inclusive a proposta de um sistema judiciário baseado na neurologia, como propõe o autor, parece inviável com nosso conhecimento atual e só repetiria os erros do passado.
Discutir a validade e a importância dessas pesquisas que não trazem previsão certeira, é entrar num debate epistemológico profundo e colocar em cheque toda a existência da neurobiologia ou psicologia como ciências, não é esse o foco, mas talvez filtrar um pouco melhor as citações, teria sido de grande utilidade. Dito isso, volto ao ponto principal, o grande problema de Comporte-se é justamente sua vastidão, o livro é um ensaio com momentos distintos de: biologia, psicologia, história e filosofia, sem os mesclar de fato. A abordagem se faz válida, é pertinente tentar entender o porque das coisas terríveis que fizemos, principalmente conhecendo como se dá o comportamento de um ponto de vista biológico, mas com as ressalvas levantadas, ela perde um pouco de sua confiabilidade — Sidarta Ribeiro comete o mesmo erro em O Oráculo da Noite, onde faz uma bela apresentação dos aspectos biológicos dos sonhos, mas se perde em capítulos finais tentando explicar como os sonhos influenciaram a história. A discussão de Sapolsky é sóbria mas também se perde, Comporte-se seria mais interessante se fosse enxugado, focado apenas na biologia do comportamento e principalmente se tivesse um maior critério no uso de de exemplos dúbios, com isso ele perderia esse ar de "levantamento bibliográfico sobre o assunto" e ganharia mais peso como uma obra ímpar.
De toda forma, Sapolsky alcança seu grande objetivo: mostrar como o comportamento é uma característica tipicamente animal, regida pelas leis da biologia e da física. Comporte-se consegue mostrar como o cérebro é subdivido para executar funções específicas e como essas funções evoluíram levando o cérebro à se adaptar para lidar com todo um sistema social que não existia no passado, assim como a genética e química podem alterar seu funcionamento. Além do insight biológico, Sapolsky também contribui para o debate filosófico a cerca da consciência, alinhando-se com o pensamento moderno de que, a consciência existe, não como algo a priori, mas que é fruto da experiência do indivíduo. Nessa camada entre filosofia e biologia, Sapolsky também discute de maneira muito charmosa, se o altruísmo ou mesmo o livre arbítrio, existem de fato ou se são apenas fruto de interações internas do nosso cérebro, que evoluíram para sempre garantir retorno positivo para o indivíduo.
Levando em conta os problemas que eu já citei, devemos tomar cuidado com essa ideia de que o funcionamento de cada região pode ser bem determinado, ao ponto do comportamento poder ser previsto. Dito tudo isso, se você é um curioso sobre o comportamento, Comporte-se vale e muito a viagem. Entender como funciona o comportamento biologicamente, é essencial para entendermos melhor como se dá o avanço da humanidade. Embora impossível de prever (pelo menos assim parece até o momento), nosso comportamento é basicamente o típico comportamento primata, engendrado numa teia complexa de interações sociais, ainda assim, simplesmente buscamos recursos nos aliando com nosso grupo em oposição a grupos externos!
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