Coração Tão Branco
- Italo Aleixo
- 18 de out. de 2024
- 2 min de leitura

"O estranho é que as palavras não tenham mais consequências nefastas do que as que normalmente têm. Ou talvez não o saibamos suficiente, acreditamos que não têm tantas e tudo é um desastre perpétuo devido ao que dizemos."
Não há outro trecho na obra que a condense tão bem quanto este. Javier Marías reflete sobre o impacto das palavras na nossa subjetividade e aborda os efeitos indiretos causados pelo dito e o não dito. O romance é nomeado em homenagem à uma frase que aparece em Macbeth, de Shakespeare: "My hands are of your colour; but I shame / To wear a heart so white", durante essa passagem, Lady Macbeth se torna torna cúmplice de um assassinato, mas como não o praticou diretamente, não consegue se sentir realmente culpada. Javier Marías parte dessa sentença, para construir uma obra sobre como as relações se moldam em torno de segredos e revelações.
Logo de cara nos deparamos com a descrição bombástica de um suicídio, porém o leitor pode deixar de lado qualquer expectativa criada a partir do excelente primeiro capítulo. A história se inicia de fato quando, o recém casado Juan, toma consciência da mudança de estado da vida solteira para a condição matrimonial e percebe nesse exato momento, que ele não é mais o mesmo, alguma coisa dentro dele mudou e então começa a indagar a finitude dessa sensação.
Com um ritmo lento, Coração Tão Branco é basicamente uma autorreflexão do personagem principal, não apenas sobre o matrimônio, mas sobre sua relação com as outras pessoas. É através de eventos ordinários da vida do personagem, que conhecemos sua relação com a esposa, ora uma companheira e hora uma estranha com quem ele compartilha o mesmo teto; com o pai, uma criatura cujo passado é envolto em mistérios, mais pelo fato de que existem diversos pais ao longo de nossa vida, o pai da infância é diferente daquele da adolescência que por sua vez se difere da vida adulta; uma grande amiga que vive uma solidão resignada no limiar entre aceitar sua velhice e correr atrás da juventude que vai lhe abandonando. Cada personagem com suas aspirações, máscaras e a própria natureza a mudar, consciências tão metamórficas quanto as relações humanas, que se transformam sempre que algum algum elemento subjetivo emerge.
O desfecho do livro faz jus ao mistério que promete desde o início, embora esse nunca tenha sido o seu objetivo. O mistério que ronda a família de Juan é apenas um pretexto para o autor discutir os desdobramentos internos que se dão na consciência onde o foco principal é no poder das palavras. Em Mrs. Dalloway vemos que, contido em cada personagem existe uma massa amorfa que transcende seu receptáculo físico, Javier Marías por sua vez mostra como os pensamentos são capazes de modificar essa substância e como uma palavra verbalizada pode ecoar e turbilhonar violentamente todos aqueles que à ouviram. É com nuances filosóficas que o romance discute a importância da oralidade para a realidade: será que o real precisa de confirmação através da linguagem ou é possível que palavras que não foram ditas se tornam memórias que se desvanecem com o tempo?
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