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Nietzsche: Biografia de uma tragédia

  • Foto do escritor: Italo Aleixo
    Italo Aleixo
  • 12 de out. de 2024
  • 5 min de leitura
Capa do livro Nietzsche: Biografia de uma tragédia

Sem nenhuma cerimônia, Rüdiger Safranski começa o livro, lançando o leitor diretamente na turbulenta consciência de Friedrich Nietzsche. Logo nas primeiras páginas, conhecemos a adoração que o filósofo tinha diante da música, ao ponto de sentir a vida perdendo o sentido quando ela findava. Para Nietzsche o tédio era um sintoma da condição humana, afinal, o homem tomou consciência do vazio como preço por ter "abandonado" seu status de animal e a maneira de fugir desse abismo, seria recorrendo a arte.


Uma biografia do pensamento. O leitor que está esperando uma biografia clássica, narrando os momentos chaves da vida do biografado, não encontrará isso aqui. Se uma das preocupações da filosofia é justamente com a natureza da consciência, nada mais justo do que subverter o gênero e traçar uma narrativa focada nas mudanças e desenvolvimento desta. Nietzsche: Biografia de Uma Tragédia minimiza os fatos vividos pelo filósofo e traz para o primeiro plano as transformações em seu pensamento.


Nietzsche escrevia desde jovem. Ele tentava de alguma forma entender si mesmo através da escrita e consolidar nas palavras as suas experiências — ele não confiava na própria memória — tentando durante esse processo dar algum sentido à vida. O exercício de capturar e estudar a essência humana através do uso da linguagem é o cerne de toda filosofia e uma vez que a civilização é apoiada por narrativas que subjazem à ela, entender o motivo e a veracidade dessas narrativas é o principal exercício de todo filósofo. Nietzsche, conhecido por "matar" Deus e o principal nome do Niilismo, já desde cedo percebe um conflito fundamental nessas narrativas humanas.


Naquele tempo, as narrativas científicas já estavam bastante difundidas e Deus deixara de ser uma hipótese necessária para o funcionamento da realidade. É quando Nietzsche elabora a ideia de que todos os problemas do mundo vinham do conflito entre o mundo dionisíaco (com suas narrativas influenciadas pelas paixões e pelo subconsciente) com o mundo apolíneo (lógico e empírico). Chegando a conclusão que para a simples existência de qualquer narrativa, os mitos são fundamentais. Essa fase do filósofo é toda confusa e revela um grande conflito interno em busca da verdade — a verdade na filosofia, seria simplesmente a validação de alguma narrativa. Ele mistura arte, religião e mitologia, tentando ele próprio — influenciado por Richard Wagner — criar sua própria narrativa baseada na beleza e importância da arte. Tal abordagem foi muito criticada na época e seria abandonada pelo próprio Nietzsche. Aqui é importante o leitor perceber como o pensamento humano se transforma e muda radicalmente, Nietzsche se desilude nessa busca pela verdade, quando percebe que o valor dos mitos lhes é atribuído artificialmente e que com o avanço do mundo racional os mitos vão se tornando meramente estéticos. Contudo, essa artificialidade dos mitos, o conflito entre o dionisíaco/apolíneo e a importância da estética, serão para sempre as bases de sua filosofia.


Depois disso, Nietzsche passa por desilusões para com a arte, rompe com seus antigos mentores e entra numa fase mais fenomenológica, tentando propor uma nova ontologia que explicasse a realidade de fato, cujo ponto mais importante é a doutrina do eterno retorno — que acredita que todas as experiências da vida se repetem infinitamente, dessa forma todos nós seríamos infindáveis, revivendo cada momento de nossas vidas incontáveis vezes ao longo dos éons. Essas novas ontologias propostas por Nietzsche, são sempre meio superficiais e sofrem do mesmo problema que ele tanto crítica, a artificialidade. A maior contribuição de fato de Nietzsche para a filosofia é em como ele encarou e avançou sobre o inaudito.


Num dos principais pressupostos epistemológicos, Kant afirma que o que tomamos por real são apenas impressões de nossa experiência, fisicamente limitada, e por isso nunca podemos ter o conhecimento real das coisas. Esse incognoscível seria o inaudito por de trás de todas as narrativas humanas. Durante toda sua existência, Nietzsche se encontra num eterno cabo de guerra entre mergulhar no inaudito em busca da verdade ou ignorá-la para o bem de sua própria sanidade. Ecoando o conflito entre o dionisíaco e o apolíneo, a grande tragédia humana é uma questão de equilíbrio entre querer descobrir a verdade e nos escondermos dentro dos mitos.


A conclusão de Nietzsche é que no inaudito não existe nada senão vontades. Se a ciência explica diversos fenômenos naturais, ela não explica nosso conceitos éticos, morais ou estéticos, tampouco o fazem quaisquer outras narrativas. Nietzsche avançou de onde a Teoria da Evolução tinha parado, despindo o Homo sapiens de qualquer essência, apenas as vontades individuais seriam verdadeiras e elas sim os motores criativos de todas as narrativas. É esse o ápice do seu pensamento, quando o Zaratustra falará do Niilismo em essência e desenvolverá outras doutrinas famosas, como o Super Homem.


Nietzsche: Biografia de Uma Tragédia é uma excelente síntese para aqueles que não conhecem a obra do filósofo, mas ainda assim não é tão fácil de ler e vai exigir do leitor algum conhecimento prévio em filosofia. A escrita de Rüdiger Safranski é impecável porém complexa, tentar entender os pensamentos de uma pessoa através das interpretações de outro filósofo pode ser uma tarefa árdua. Em alguns momentos fica a sensação de estar avançando lentamente num pântano lamacento de ideias — me sensação semelhante aquela evocada pelas primeiras páginas de O Grande Sertão Veredas — mas no fim das contas o resultado final é mais do que satisfatório.


No último capítulo Safranski mostra como a filosofia de Nietzsche influenciou outros pensadores, alguns timidamente outros de maneira declarada. A evolução tinha lançado por terra a ideia de que éramos seres especiais e Nietzsche rebaixou até mesmo nossos conceitos morais, esse choque de realidade era encarado com admiração e temor pelos intelectuais por ele influenciados. Thomas Mann, por exemplo, abraça sua ideia de estética, onde a arte deve ser autorreferente e livre de qualquer tipo de obrigação social, mas reconhece os perigos de um pensamento puramente estético:


"Já não somos suficientemente estetas para temermos uma profissão de fé no Bem, e nos envergonharmos de conceitos tão triviais como verdade, liberdade, justiça" - Thomas Mann

Ele traça uma fronteira que Nietzsche lutou para atravessar: o poder da criação emerge de um mar sem significados, no caos do inconsciente e por isso a arte transcende qualquer obrigação social. A estrutura social, por outro lado, depende de conceitos artificiais e esteticamente vazios, sem os quais o mundo civilizado implodiria. Todos os indivíduos se situam em algum ponto dessa fronteira, mesmo que desconheçam sua existência. É de Safranski a imagem que talvez melhor descreva o pensamento nietzschiano: nela Kant está parado numa praia, que representa os limites do conhecimento, diante de um mar revolto, que representa o incognoscível:


"Deveríamos deixar o reino bem fundamentado da Razão e partir para o mar aberto do Desconhecido, indagou Kant, e sustentou que ficássemos, Nietzsche, porém, partiu." - Rüdiger Safranski





 


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