O Realismo Mágico como visão de mundo do povo latino-americano
- Italo Aleixo
- 3 de nov. de 2023
- 11 min de leitura
Atualizado: 15 de ago. de 2024

Bastante de Cem Anos de Solidão está condensado em:
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”
que como outras grandes obras da literatura se inicia com um trecho poderoso, ao que momentos depois é completado com:
“José Arcadio Buendía pagou, e então pôs a mão sobre o gelo, e a manteve posta por vários minutos, enquanto o coração crescia de medo e de júbilo ao contato do mistério. Sem saber o que dizer, pagou outros dez reais para que os seus filhos vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Aurélio negou-se a tocá-lo. Aureliano, em compensação, deu um passo para diante, pôs a mão e retirou-a no ato. “Está fervendo.“
Este simples fragmento, traz consigo todo o núcleo de um dos gêneros literários que melhor representam a identidade latino-americana: o Realismo Fantástico.
Meu primeiro contato com o gênero foi justamente através de Cem Anos de Solidão, ao qual fui arrebatado e assim que virei a última página do clássico quis entender o que era esse tal de realismo fantástico e o que ele tinha afinal de diferente de outros tipo de fantasia? Como o mágico de Gabriel García Márquez se diferenciava do mágico de A Tempestade, de William Shakespeare, por exemplo? A resposta só me veio com o tempo, construída a cada nova leitura e está incorporada não só nos personagens que povoam as páginas dos livros, como também à sua identidade nacional e na maneira como eles enxergam a natureza.
O que é o fantástico e como o separá-lo do ordinário? Se podemos chamar uma criatura que foge do Sol e pode se transmutar em morcego para se alimentar do sangue humano, de mágica, porque não podemos fazer o mesmo com um magnata que se veste de morcego para combater o crime à noite? Ou podemos? Não pretendo discutir tais especificidades, mas recomendo o ensaio do mestre da fantasia J. R. R. Tolkien: Sobre histórias de Fadas, publicado em Árvore e Folha. Para Tolkien a fantasia nasce já com o surgimento da linguagem, a partir do momento em que o Homo sapiens — ou alguma outra espécie do gênero — se torna capaz de converter objetos em símbolos e transformar essa informação em palavras, ele se torna portador do dom da criação. O simples jogo de palavras somado à percepção subjetiva que temos das coisas permite a gênese de mundos mágicos, Tolkien usa como exemplo um hipotético “Sol verde”: o simples fato de juntarmos uma característica (cor) à um objeto (o Sol), ambas estruturas presentes na linguagem, já leva a criação de uma realidade distinta da nossa, "hipotetizar" a existência de um o Sol verde já nos leva a imaginar um mundo distinto do nosso e esse tipo de criação simples de se realizar, já poderia ser utilizado por qualquer civilização que dominasse a linguagem.
A fantasia é portanto a arte da criação, a capacidade de gerar novos mundos! Tolkien discorre sobre esse poder e estabelece alguns parâmetros onde possamos situar as fronteiras do mundo das fadas ou Faeria: o fantástico é uma criação À PARTE do mundo real, um mágico prestidigitador é diferente de um feiticeiro élfico pois ambos habitam mundos diferentes, se está dentro de nossa realidade não é fantástico. Com esse argumento, Tolkien exclui da esfera do fantástico as metáforas, prosopopeias e outras construções que não tenham o intuito de criar um novo mundo: animais falantes podem tanto ser habitantes de faeria como em As Crônicas de Nárnia, quanto podem simplesmente ser uma metáfora ou ironia sobre o estado das coisas, como em A Revolução dos Bichos e O Pequeno Príncipe; um agente secreto que desafia as leis da física e do bom senso numa guerra de um homem só, pode parecer insólito mas ainda assim está situado no “mundo real”, enquanto um super-soldado, dotado de poderes meta-humanos seria um habitante do mundo das fadas, faeria reside na intenção do autor!
Cada um desses mundos criados acaba consequentemente dotado de um conjunto de regras intrínsecos cujo “motor” que gera o fantástico é criado pelos seus autores, intencionalmente ou não. Independente de quão estranhas ou variadas sejam as criações fantásticas, cada mundo tem suas próprias leis: você aceita que os heróis podem voar sem consequências no universo da Marvel, mas não espera personagens voando livremente na Terra Média em O Senhor dos Anéis — a menos que tal personagem seja Thorondor, o rei das águias, uma criatura que teria naturalmente essa capacidade . Até nas ficções científicas mais ousadas — tomemos de exemplo obras como O Guia do Mochileiro das Galáxias ou Rick and Morty — existe um motor do fantástico que está sujeito as hipóteses e leis da física.
Porém, quando olhamos para o realismo fantástico as coisas soam diferentes, o motor do fantástico não é tão óbvio e estranhamente não conseguimos discernir esse insólito como um mundo à parte. A Macondo de Gabriel García Márquez está enraizada no nosso mundo ao mesmo tempo que as coisas que acontecem por lá são genuinamente mágicas, como isso é possível? Isso se dá, graças a identidade do povo latino-americano.
Diz-se que o realismo fantástico é uma resposta latino-americana ao fantástico europeu e a diferença entre esses gêneros está na própria essência de seus povos. Para uma ideia geral do que seria o fantástico europeu, recomendo o ensaio de Tolkien já citado anteriormente. Lá ele discorre sobre os contos de fadas desde suas origens nos primórdios da civilização e propõe a existência de um caldeirão hipotético, onde os arquétipos que constituem os mitos são cozinhados ao longo das eras, dando origens às histórias que conhecemos. É com a proposta desse caldeirão que Tolkien explica como mitos, heróis, crenças (religião) e fatos históricos andam juntos, dando a impressão de se repetirem ao longo do tempo e vai além, defendendo que contos de fadas não são para crianças, um equívoco dos críticos, mas que são feitos para e por qualquer um com uma boa noção do mundo real.
Ora, se os europeus tem consciência da artimanha do caldeirão onde “cozinham” suas histórias, muito se dá por um desenvolvimento racional precoce da Europa — e eu não estou falando sobre inteligência e sim sobre racionalismo e empirismo de fato — onde a filosofia é usada há séculos para discutir a origem e desenvolvimento do conhecimento, sempre buscando explicar o mundo, natural ou metafísico! Essa busca por explicações foi vital para o desenvolvimento do pensamento europeu, culminando com a revolução científica e com o estabelecimento de uma sociedade mais racional. Nesse pano de fundo o fantástico nunca foi abandonado, mas num mundo onde tudo tem uma explicação, ele precisa ser criado intencionalmente.
A impressão que fica, é que o fantástico europeu sempre foi planejado — pelo menos a partir do século XVII — na Europa mítica a fantasia estava relegada aos mitos religiosos, lendas populares e poemas épicos, mas com o avanço do secularismo, das ideias do Iluminismo e de um desenvolvimento econômico que culminou numa sociedade mais alfabetizada, a fronteira que separa os dois mundos fica mais forte e o fantástico se torna cada vez mais intencional. As Brumas de Avalon fazem um belo recorte dessa cisão entre os dois mundos: as lendas arturianas são inquestionavelmente fantásticas, mas essa fronteira é muito tênue na obra de Marion Zimmer Bradley, que mostra a luta de Morgana para defender Avalon do avanço do cristianismo, que varria a cultura celta. As brumas servem como um exemplo tanto para o desenvolvimento do pensamento europeu em detrimento de uma visão mágica do mundo, como também é um exemplo de motor mágico/realista, pois ironicamente se encontra com um pé dentro do fantástico e outro dentro da roupagem realista das crônicas arturianas, como foram narradas por Bernard Cornwell, por exemplo — as cenas do roubo do Santo Graal ou no mundo das fadas, são um excelente exemplo de como as fronteiras do fantástico podem ser nebulosas, o que aconteceu ali? É mágico ou é um delírio? Depende do ponto de vista do leitor para com a história!
Quando o realismo mágico, propriamente dito, surge num já avançado século XX, a mentalidade científica já tinha varrido a Europa, que era um mundo bastante desenvolvido e com os maiores índices de alfabetização do planeta. Enquanto isso, as coisas na América Latina eram bem diferentes. Mais nova que a Europa — pelo menos num contexto de desenvolvimento intelectual — a América Latina tinha sido um continente muito explorado e com pouca expectativa de desenvolvimento. Em meados do século XX o número de analfabetos ainda era altíssimo, com uma população majoritariamente rural e uma visão de mundo muito mais mística do que racional. Já escreviam fantasia por aqui, não dá pra falar do fantástico latino americano sem citar Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, entre outros, mas mesmo esse fantástico com nuances surrealistas segue as regras propostas por Tolkien: à de uma criação apartada do mundo real. De onde vem o motor do realismo fantástico então?
Foi num clássico mexicano que vimos os germes do que seria o realismo fantástico. Usando como pano de fundo o contexto histórico violento ao qual o México esteve embebido há séculos, Pedro Paramo conta a história de Comala, uma cidade perdida no tempo, narrada pelos mortos que nunca à deixaram. Não é segredo que a obra prima de Juan Rulfo, foi uma das maiores influências para Cem Anos de Solidão, mas mesmo o fantástico Pedro Páramo não é tão mágico assim, seu motor do fantástico está perdido em algum ponto entre o insólito genuíno e o insólito de Gabriel Garcia Marquez: em nossa realidade os mortos não falam, mas os mortos de Comala não parecem estar localizados num mundo fantástico, ao passo que também soam insólitos demais para o realismo fantástico, seriam somente as lembranças dos que ali morreram que ficaram dispersas na atmosfera de e foram captadas pelo contador de histórias?
Por mais contraditório que possa parecer, o realismo fantástico é um fantástico situado no mundo real, cujo motor é a visão de mundo supersticiosa que os latinos americanos teriam do mundo. Tolkien poderia não concordar com isso, mas sabe que muito do fantástico surge da necessidade de explicar fenômenos que fogem ao nosso entendimento e justamente, o realismo fantástico, é a explicação da realidade quando a razão ainda não fundou seus alicerces. A narrativa fantástica está muito atrelada ao mundo rural, selvagem, onde a ciência é um luxo distante e inovações são sempre vistas com curiosidade e espanto. A complexidade do mundo não está apenas nos fenômenos da natureza, mas também no funcionamento dos sistemas governamentais modernos, dessa forma, a tentativa de enxergar e explicar o absurdo é o que confere ao realismo fantástico tal profundidade.
Vemos no povo de Macondo uma síntese de todo o povo latino americano, Cem Anos de Solidão é bastante louvado pelo retrato histórico que faz da Colômbia e conta de maneira poética a chegada dos primeiros colonos, passando pelo desenvolvimento, urbanização, revoluções, massacres e seus governos ditatoriais. O realismo fantástico permeia todo o espírito latino, e desde Pedro Páramo se espalhou pelo continente captando a alma e expondo a visão de mundo do povo, sempre narrando as mazelas da ditadura (como fizeram Gabo, Miguel Ángel Asturias, Isabel Allende, etc...) ou a vida cotidiana em cenários isolados mediada pelo medo do novo (José J. Veiga, Socorro Acioli, Gilbert Hernandez, etc...).
Se tivesse que escolher uma única palavra para sintetizar o realismo fantástico, eu apostaria em "absurdo", não por ser algo impossível, mas porque o absurdo dolorosamente faz parte do cotidiano. O absurdo é o sentimento que representa anos de exploração e sofrimentos passados pelos latinos americanos, portanto a fantasia não é apenas um jeito de explicar o mundo, mas também expressa o sentimento de resignação perante o destino, sob a forma do absurdo. Para mim, uma das cenas mais inesquecíveis do clássico de Gabriel García Márquez, é aquela onde um filete de sangue se esvai de um personagem abatido e percorre um caminho bastante antinatural para "avisar" sua mãe:
"Assim que José Arcádio fechou a porta do quarto, o estampido de um tiro de pistola retumbou pela casa. Um fio de sangue escorreu por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu à rua, continuou seu curso direto pelas calçadas desiguais, desceu escadarias e subiu parapeitos, passou ao largo da Rua dos Turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, girou em ângulo reto na frente da casa dos Buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas grudados no rodapé das paredes para não manchar as tapeçarias, continuou pela outra sala, driblou numa ampla curva a mesa da sala de jantar, avançou pela varanda das begônias e passou sem ser visto por baixo da cadeira de Amaranta, que dava uma aula de aritmética para Aureliano José, e se meteu pela despensa e apareceu na cozinha onde Úrsula se preparava para quebrar trinta e seis ovos para o pão. − Ave Maria Puríssima! – gritou Úrsula"
Um momento essencialmente mágico mas que evoca toda a tristeza do acontecimento. O realismo condensa o sofrimento, enquanto o fantástico expressa a indignação e as maravilhas da natureza.
A melhor obra que já li dentro do realismo fantástico é o ciclo de histórias em quadrinhos, Palomar — publicadas na HQ Love and Rockets, pelos irmãos Gilbert e Jaime Hernandez — que consegue condensar completamente o sentimento de tristeza, causado não só pela injustiça social mas também pelo simples peso da vida, como os sonhos destruídos ou a simples passagem do tempo, como também as maravilhas da natureza e a maneira como os personagens a encaram, é o mais puro suco do realismo fantástico, sem recorrer para acontecimentos mágicos quase hora nenhuma. Palomar consegue abordar as transformações psicológicas dos personagens, através do absurdo e do fantástico, tanto como faz um baita recorte das grandes mudanças históricas ocorridas na América no fim do século XX, é uma versão globalizada de Cem Anos de Solidão.
Eu escolhi contrapor a Europa à América nesse texto, apenas porque a Europa é o berço literário mais bem divulgado do mundo — não necessariamente o mais antigo — mas esse tipo de abordagem fantástica, que prioriza uma visão de mundo menos racional e mais mística, pode surgir também em outros lugares: nesse momento, o único exemplo que me vem a mente é o realismo animista de Mia Couto. O moçambicano não usa como motor do fantástico a visão supersticiosa mas sim um motor onírico, onde os sonhos se entrelaçam e moldam a realidade, uma vez que os sonhos tem um papel fundamental na explicação do mundo por algumas religiões africanas. Algumas pessoas também citam a literatura do japonês Haruki Murakami como realismo fantástico, mas na minha concepção suas obras estariam inseridas dentro de Faeria.
Talvez o grande charme do realismo fantástico e o porque dele ser tão atrativo, é que é um gênero que transpõe as barreiras literárias, como dito anteriormente, ele não é só uma forma narrativa mas também uma visão do mundo. O realismo fantástico é perceptível fora dos livros e é sobretudo rural, porém, o mundo mudou, a globalização unificou as estruturas de pensamento e as cidades tendem a tecer uma esfera anti-fantástica em torno delas, essas mudanças nada mais são que um mero sintoma da passagem dos tempos. Hoje se alguém te contar que viu o diabo numa encruzilhada, você vai simplesmente imaginar que se trata de uma pegadinha ou que a pessoa está maluca, mas se no passado alguém dissesse o mesmo para seus avós, provavelmente eles evitariam aquele caminho.
O realismo fantástico foi a visão de mundo dos nossos avós e se você foi um bom observador na sua infância, se lembra que ele estava presente nas histórias e nos causos, que as famílias costumam contar quando todo mundo se reunia para conversar após a janta, sentados no alpendre ou na porta de casa. Entre várias, nunca me esquecerei de uma história em particular que a minha avó contava — nas raríssimas vezes que ousou repetir tal relato — que era o mais puro exemplo de realismo fantástico. Ela contava que, quando criança, teve um encontro com uma "criatura maligna": se tratava de um ser com corpo serpentiforme, gigantesco, repleto de escamas e pelos e que ostentava na fronte uma temível cabeça de bode! A criatura se locomovia enrolando-se em uma cerca até se lançar dentro de um ribeirão e desaparecer. Nas poucas vezes que ouvíamos essa história, começavam as discussões e toda uma troca de explicações, céticas ou religiosas, sobre o que ela teria realmente visto. Se você é um habitante das cidades ou do século XXI, como uma visão de mundo menos mística, ou mesmo um entusiasta mediano de biologia com um bom conhecimento da fauna local, já deve ter tirado suas próprias conclusões, mas na visão daquela criança que foi a minha avó, habitante de um mundo mais "fantástico", ela sabia que se tratava de um encontro com o diabo!!!
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