Porque A Cultura Pop é Tão Fascinada pelos Desertos?
- Italo Aleixo
- 22 de ago. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 7 de jan.

Desde a minha infância eu já sentia uma certa atração por ambientes selvagens e adorava visitá-los através de livros e filmes. Dentre eles, um local que sempre me encantou foi o deserto, sua beleza exótica e seus mistérios me faziam ficar vidrado na frente da televisão, curtindo tanto filmes como Sinbad e Os Sete Mares, Conan ou Operação Condor, quanto folheando páginas de enciclopédias em busca dessas regiões desoladas do planeta. Porém esse sentimento está longe de ser apenas um traço de personalidade, os desertos são objetos de fascínio geral e estão impregnados no imaginário popular, fazendo deles um ambiente recorrente na cultura pop.
Isso fica mais evidente se verificarmos a influência de um filme que revolucionou o cinema e se tornou modelo para diversas outras mídias. Em 1926 o militar britânico, T. E. Lawrence, publica Os Sete Pilares da Sabedoria, livro onde narra sua experiência no deserto, atuando como um dos articuladores da Revolta Árabe durante a primeira guerra mundial. A obra é um marco literário não apenas pelo seu valor intrínseco, mas também pelo fato de ter inspirado o icônico filme Lawrence da Arábia. O longa se tornou um dos maiores épicos da história do cinema, criou um mito em torno da figura de Lawrence e influenciou dezenas de obras posteriores. A representação do deserto de David Lean influenciou diretamente as estéticas de Duna — primeiro na literatura e só depois no cinema — e Star Wars, as duas mais bem sucedidas Space Operas de todos os tempos e se tornou um modelo a ser seguido pelo gênero de ficção científica.
O deserto está presente em tudo quanto é tipo de mídia. Por ser "visualmente limpo" ele é o cenário ideal para uma representação gráfica que contrapõe os personagens com a imensidão do ambiente, como fica evidente nos famigerados faroestes e toda uma leva de filmes de sci-fi. O visual associado à escassez de recursos, deu origem à diversas narrativas pós-apocalípticas cujo maior exemplo é a franquia Mad Max, que por sua vez, inspirou toda uma onda de adaptações. Os desertos aparecem na música, nas artes plásticas, em jogos de vídeo game, nos quadrinhos — vale destacar o divertido Mundo Invernal, um tipo de Mad Max no gelo — e claro na literatura. As vezes o deserto é simplesmente o ambiente físico disponível, como no western ou na literatura regionalista — vamos lá, você não sabia que Sertão é uma derivação de Desertão? — outras vezes transcende a experiência se tornando um local de autorreflexão ou um personagem por si só, o deserto ainda é um local de danação, onde Moisés se perdeu e Cristo foi tentado pelo Diabo.
O Insondável nos Seduz
Uma explicação simples para esse fascínio é a ideia de que em geral ambientes selvagens sempre nos atraem! A essência do que nos faz humanos está na capacidade de criar narrativas que expliquem o mundo, e nessa tentativa de entender a realidade estendemos os tentáculos do nosso conhecimento para todas as regiões possíveis do universo. Nietzsche ao discutir o incognoscível de Kant diz que, nossa realidade não há de ser nada além daquilo que criamos com o uso dessas narrativas. Dessa forma, os aglomerados urbanos seriam então regiões onde nossas narrativas se concentram e onde a realidade explicada é o mais densa possível, enquanto nos ambientes selvagens elas mal penetram. Nesses lugares, o véu que nos separa do desconhecido ainda é tênue e por isso exercem sobre nós um maior fascínio. Não é atoa que espíritos e outros entes mágicos sempre "habitaram" os ermos, já que e lá que escolhemos esconder nossos mistérios, como tesouros e civilizações perdidas. No jogo Uncharted 3, o jogador assume o controle de um caçador de tesouros que está em busca de Ubar, a Atlântida das Areias, uma cidade lendária perdida em algum lugar do deserto de Rub' al-Khālī, na Península Arábica; em Tuareg, livro de Alberto Vázquez-Figueroa, Gacel Sayad se depara com uma lendária caravana perdida, repleta de memórias e tesouros, durante sua jornada de vingança pelo deserto. Sob essa óptica, toda a natureza selvagem é sedutora, além dos desertos, temos florestas virgens, planícies vastas, o oceano bravio e montanhas imponentes!
"Tragam-me o Horizonte" - Capitão Jack Sparrow em Piratas do Caribe
O grande diferencial que vejo no deserto é de ordem estética: no deserto encaramos o horizonte! Se todos os outros serem vivos se dispersam em busca de recursos, o Homo sapiens é, até onde sabemos, a única espécie que viaja pelo mero prazer de viajar, buscamos aquilo que há além do horizonte. Essa sensação de querer ver o que há além, preenche a alma de exploradores, mochileiros, marinheiros e outros viajantes pelo mundo. O sentimento de querer alcançar a próxima ilha, dos exploradores polinésios, é semelhante ao do escalador que busca alcançar o próximo pico, eles buscam ver o que se estende além do horizonte que se amplifica sobre eles.
Aqui dou um passo além da minha capacidade e me pergunto se essa atração não estaria em nosso passado evolutivo. Uma das poucas coisas que sabemos sobre nosso surgimento é que em algum momento descemos das árvores e passamos a habitar as planícies, quando deixamos de nos locomover em quatro patas e nos sustentar sobre apenas duas. O que ocorreu a partir disso é tudo muito especulativo, mas é natural presumir que uma das maiores diferenças que se deu na nossa percepção da realidade foi trocar um ponto de vista rente ao chão por uma visão mais panorâmica da paisagem. Sem a proteção das árvores e sem um corpo forte o bastante para lutar contra predadores, vigiar o horizonte deve ter sido uma das principais ocupações de nossa espécie. Desde então nunca perdemos essa "mania", alcançar o ponto mais alto de um terreno é a ação básica de qualquer explorador ou de soldados num campo de batalha, mas também o é de toda criança que gosta de escalar as coisas. É nossa eterna busca do horizonte, mesmo que subjetiva.
Dentre as regiões selvagens, apenas os desertos, mares e montanhas apresentam seus horizontes escancarados para o espectador, eles porém são entidades ontologicamente diferentes, pois cada um oferece uma experiência fundamentalmente distinta, que compreendem diferentes narrativas. No mar a paisagem se repete indefinidamente — a não ser que esteja pontilhado por ilhas — e o horizonte está sempre a fugir do viajante, nesse caso ele é uma entidade que guia a jornada mas não participa ativamente dela. O deserto e as montanhas por outro lado apresentam uma "menor entropia" com relação ao mar, onde vários horizontes distintos se estendem um após o outro, evocando em nós essa curiosidade pela busca ancestral. É nesse plano de horizontes sobrepostos que o deserto encanta, seja evocando o sentimento da exploração, como no jogo Journey, onde você desliza de um horizonte à outro vagando à deriva pelo deserto, coletando memórias sobre uma civilização perdida, ou seja em um estado de luta e fuga permanentes, como os personagens de Mad Max, que precisam se manter vigilantes sobre comboios escondidos atrás de cada duna. Sob esse ponto de vista puramente estético, as montanhas apresentam exatamente as mesmas qualidades dos desertos, exceto por um detalhe:
"O que elas procuram é a imensidão que as completará" - Terra dos Homens, Antoine de Saint-Exupéry
A contribuição maior do horizonte para a estética do deserto é a noção de vastidão linear. A profundidade de campo do deserto coloca em perspectiva os objetos que se "perdem" na imensidão do cenário, nesses espaços vastos, a nossa presença se dilui completamente e nos vemos apequenados perante a imensidão da natureza. Esse potencial imagético é explorado não só pelo cinema, mas também na literatura, passando pelas descrições sóbrias dos vários tipos de desertos atravessados por T. E. Lawrence, pelo deslumbramento de Antoine de Saint-Exupéry diante do cenário assombroso e até nas palavras de Jorge Amado, que fazem do Sertão um personagem por si só.
Contrastando com o mar e as montanhas, a vastidão do deserto é "acessível", ela confere liberdade aos personagens, coisa que não acontece nos outros ambientes onde as narrativas são de certa claustrofóbicas e focadas no confinamento. Por isso a relação do personagem com o deserto ocorre de maneira distinta, onde até o tempo parece fluir de maneira própria.
" O que é, Major Lawrence, que o atrai pessoalmente para o deserto?" ; "Ele é limpo!" - Lawrence da Arábia, David Lean
Um outro fator singular dos desertos é que, diferente dos outros ambientes que impregnam no personagem, o deserto é limpo. Essa "esterilidade" pode ser vista como uma barreira que separa o ambiente dos personagens, se a visão panorâmica do cenário ressalta a pequenez do personagem diante da natureza, a recusa do ambiente em interagir, por sua vez, intensifica ainda mais a sensação de isolamento, levando à uma típica introspecção que fazem dos desertos cenários perfeitos para histórias de contemplação e autorreflexão.
Por conta disso o deserto é um motor de histórias sobre o surgimento grandes líderes e profetas — como o é de fato no mundo no real, por fatores que seriam relacionados também com a escassez de recursos. É nesse tipo de jornada interior que estão inseridos personagens como o Muad'Dib de Duna, o guerreiro peregrino no interessante O Livro de Eli e o próprio Lawrence em sua obra. Quando o deserto não está criando salvadores, ele é um templo para reflexão não apenas dos personagens mas também dos próprios autores. Antoine de Saint-Exupéry o visita em em Terra dos Homens para refletir sua própria relação com a natureza e em O Pequeno Príncipe onde concebeu uma das mais populares obras literárias, sobre a empatia e as relações humanas. É no deserto também que o tenente Giovanni Drogo, personagem de Dino Buzzati, reflete sobre a passagem do tempo e sobre as perspectivas da carreira, numa das melhores obras literárias sobre a passagem e o desperdício de tempo, O Deserto dos Tártaros.
Tudo isso que eu escrevi até aqui pode ser uma mera literatice sem sentido, fundada em alguma preferência pessoal particular e talvez esse texto seja apenas um pretexto para escrever uma lista de obras que se passam no deserto e filosofar um pouco sobre o ambiente. Porém é inegável que o deserto é fascinante e oferece histórias espetaculares, suas qualidades estéticas aliadas à psique dos dos personagens que o habitam, criam um tipo peculiar de realidade onde o misterioso, o surreal e o metafísico andam de mãos dadas!
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