Uma Pedra de Amolar o Pensamento : Como a Filosofia Funciona na Prática?
- Italo Aleixo
- 17 de nov. de 2024
- 9 min de leitura

A filosofia é talvez a mais desprezada das disciplinas do currículo escolar. Como aluno de escola pública, eu nem mesmo tive aulas de filosofia durante o ensino médio e durante a graduação apenas uma disciplina condensada foi oferecida sobre o tema. Além disso, é uma disciplina hermética e muito complexa. Dos primeiros livros que eu li, não consegui assimilar absolutamente nada — alguém twittou que filosofia é um esquema de pirâmide, onde você sempre precisa ler um autor para entender outro. Não é de se estranhar, portanto, que as as pessoas não pensem na filosofia no dia a dia, afinal, qual a importância de saber quem foi Platão e sua Caverna Mágica? Ou de entender o que Kant queria dizer com o icognoscível? Qual a função dessas coisas no mundo real?
Eu mesmo não era um entusiasta e apenas recentemente passei a me interessar pelo assunto, quando comecei a me questionar: o que é ciência de fato e quais seus limites. E a partir desse desse viés epistemológico foi inevitável se deparar com questões que lidam com a natureza do subconsciente e da própria realidade. Mas a filosofia vai além disso, afinal é ela quem direciona o pensamento, não apenas individual, mas social como um todo, culminando nas leis ou julgamentos morais do dia a dia. Eu não sou filósofo e provavelmente vou usar termos incorretos — já que não conheço uma nomenclatura oficial — e posso até mesmo cometer o equívoco de discorrer por uma linha de pensamento ilusória. Mas essa é apenas uma tentativa pessoal de esclarecer não só o porque da filosofia ser importante, mas como ela funciona de fato.
Eu li em algum lugar que "a filosofia é uma pedra de amolar o pensamento", afinal é por meio dela que buscamos conhecimento, verificando a verdade das coisas, questionando e debatendo a relevância das estruturas de pensamento existentes. Essa reflexão aguça o senso crítico. Filosofar então, é sempre debater sobre o mundo, um ato de eterno questionamento.
"In Principio Erat Verbum"
Sem o receio de estar cometendo nenhuma gafe antropológica, podemos afirmar que não só a filosofia, mas toda a tragédia humana, nasce com o surgimento da linguagem. Não sabemos como, nem quando ela surgiu — e dificilmente teremos algum esclarecimento quanto à isso algum dia — mas foi a linguagem que colocou o Homo sapiens no centro de tudo. Desde que Darwin abalou o mundo com a Teoria da Evolução, sabemos que somos só mais uma entre as milhares de espécies que existem, desde então não há nada concreto que nos torne essenciais, a não ser a capacidade de acreditar nisso e divulgar essa história através da linguagem. Falamos em antropocentrismo, porque nenhuma outra espécie reivindicou o protagonismo por meio de alguma linguagem.
Eu já discorri sobre isso, mas como funciona a linguagem na prática? — e aqui sim, talvez eu possa estar cometendo alguma gafe linguística. Todos os seres vivos são capazes de se comunicar — comunicação essa que pode ser química, elétrica, visual, auditiva, etc... — mas apenas nós temos a capacidade de usar linguagem. De uma maneira bem simplória a linguagem é a capacidade cognitiva de transformar sinais, sonoros ou gráficos, em símbolos. Veja a seguinte imagem:

Na primeira figura vemos um rabisco e na segunda uma palavra. Essencialmente elas são a mesma coisa, uma mancha de tinta numa folha de papel (ou pixels numa tela), mas a capacidade da linguagem, permite ao receptor — desde que tenha capacidade para entender as regras daquela linguagem, como ser alfabetizado e conhecer o idioma — interpretar a segunda imagem de maneira diferente, ela deixa de ser um rabisco e passa a representar algo, nesse exemplo, a energia liberada em uma reação química específica e talvez, a primeira ferramenta efetiva que nós aprendemos a usar. Ronda pela internet uma foto fantástica que mostra um orangotango pescando, tal imagem ressalta nossas relações de parentesco com essas criaturas, o que separa um orangotango pescando de um pescador usando um arpão, é a linguagem. Os animais, em geral, são capazes de usar ferramentas: macacos usam pedras para quebrar cocos, aves usam galhos para cutucar fendas em árvores, corvos se aproveitam de carros passando pela estrada para esmagar nozes, nós utilizamos smartphones. A grande diferença, é que os outros animais conseguem usar ferramentas para um fim prático mas sem a capacidade de transformá-las em um símbolo.
Para um orangotango um galho continua sendo um galho, mesmo que seja útil para arrancar os peixes da água, para um Homo sapiens a linguagem transforma esse galho em um arpão. Aquela ferramenta agora tem uma funcionalidade, um novo sentido que transcende a existência primária dela, assim como a palavra fogo. O ato de transformar aqueles galhos em um símbolo, fazem "surgir" naquela realidade um novo tipo que objeto que não existia antes, as ferramentas — nesse caso, os arpões. Isso tem um efeito prático imediato, que é a possibilidade de compartilhar esse conhecimento e preparar esses objetos para usos posteriores. O mesmo ocorre com as armas, os chipanzés entram em guerra usando pedras e galhos, mas só os humanos afiam suas lâminas para batalhas futuras.
Através do uso da linguagem, o Homo sapiens consegue "criar" objetos abstratos: um rabisco vira uma palavra, e um galho vira um arpão ou um porrete. Através desse mecanismo temos três tipos de realidade coexistindo: a realidade objetiva são as coisas como elas são, tudo aquilo que existe independente do observador; a realidade subjetiva é mediada pela experiência, é a realidade interpretada pelos sentidos do indivíduo; a linguagem permite um terceiro tipo de realidade, a realidade intersubjetiva, que surge quando as subjetividades de diferentes indivíduos se comunicam entre si criando uma realidade comum as duas. É dentro dessa realidade que os objetos existem, o arpão não é um arpão apenas para o usuário, mas também o é para todos aqueles que compartilham a linguagem e aquele conhecimento. É por meio dela, que nossa espécie cria, a partir de entidades reais, objetos artificiais como os símbolos, as ferramentas, os sentimentos e as narrativas humanas.
Parábolas que Moldam o Mundo
Eu sempre me refiro à esse termo como narrativa, mas não sei como ele é chamado oficialmente dentro da filosofia. Mas o que é uma narrativa na prática? Nós somos uma espécie social, assim como todos os primatas e várias outras espécies. Uma vez que existe uma limitação biológica no ato de se relacionar com outros indivíduos, afinal quanto maior o grupo mais difícil é memorizar, diferenciar e saber quem faz parte dele, qualquer grupo que cresça demais, tenderá a ruir. A exceção mais notável são os seres humanos — e os insetos eussociais — as cidades humanas são bandos com centenas, milhares de indivíduos. E vamos além, já que diferentes bandos humanos podem conectar-se e criar uma rede de interação entre bilhões de indivíduos. Tudo isso só é possível, graças as narrativas.
Assim que começamos a nos comunicar por meio desses símbolos e nos organizar em grupos, precisaram surgir símbolos sociais que permitissem a coesão desses grupos explicando as coisas e estabelecendo normas: tabus, regras e proibições, códigos de conduta de uma forma geral. Mas toda regra ou explicação de alguma coisa, deve ser justificada de alguma forma — caso contrário cada indivíduo poderia criar sua própria justificativa individual — entram em cenas as narrativas! Elas são tentativas de explicar o funcionamento do mundo e justificar a existência das entidades abstratas. Para que qualquer objeto artificial possa existir, alguma justificativa se faz necessária, seja para validar tal objeto ou pelo menos para explicar como ele funciona. Um grupo humano só existe porque compartilha entre si uma ou várias narrativas, viver em grupo é "ser convencido", através de narrativas, a fazer parte desse grupo.
Essas narrativas vão desde explicações simples, como a finalidade ou propósito de um arpão, até coisa mais complexas como, para onde vamos depois que morremos? Narrativas metafísicas, como as religiões — afinal era muito mais fácil relegar à entidades poderosas e desconhecidas os mistérios do mundo — e narrativas mundanas, que tentavam explicar fenômenos básicos ou determinar orientações sociais, provavelmente sempre estiveram lado a lado. A medida que a espécie aumentava e o homem se dispersava cada vez mais, novas narrativas foram surgindo, cada grupo separado por crenças, ritos, dogmas, códigos e leis próprios. A medida que novos grupos surgem as narrativas se multiplicam e precisam lidar não só com as entidades artificiais criadas por aquele grupo, mas também com as próprias narrativas!
Se uma narrativa é uma explicação sobre o mundo, sobre o propósito das coisas, a discussão sobre existência ou não de algo e a orientação de como cada um deve se portar, elas são essenciais para a coesão do grupo e também um objeto poderoso de controle. Não há nada mais tentador para um indivíduo do que impor aos outros uma narrativa que lhe favoreça. Então, como escolher entre uma narrativa ou outra? As narrativas também são por si só, entidades artificiais criadas intersubjetivamente e elas próprias precisam de uma narrativa subjacente, afinal, precisam ser justificadas de alguma forma. É nesse exato momento que nasce o filósofo.
São os filósofos que debatem a veracidade dessas narrativas. Para uma narrativa ser confiável ela precisa, até certo ponto, corresponder a realidade, passando por algum tipo de verificação, caso contrário seus seguidores simplesmente perderiam a credibilidade nela. Perceba que eu não estou falando necessariamente de ciência, uma norma de boa conduta, como "não roubarás", não pode ser validada cientificamente, mas o é através de outros narrativas, religiosas ou não. Durante essa busca pela verdade, ou seja, a busca por narrativas que representem de fato o mundo real, os filósofos irão testá-las e avaliar quais delas melhor se adequam à realidade objetiva.
A realidade objetiva essencial é algo que está além de nosso entendimento, nós só a conhecemos por meio de nossos sentidos, ou seja, através da nossa experiência — que pode variar de um indivíduo para o outro. A partir dessa realidade, nós criamos símbolos, entidades artificiais, com significados e utilidades próprias e a partir deles, criamos milhares de narrativas que explicam o mundo e justificam nosso comportamento. Filosofar é se debruçar sobre esse emaranhado de narrativas e encontrar aquelas que realmente fazem sentido.

Nesse ponto o leitor que chegou até aqui deve estar se perguntando: e daí, eu posso muito bem viver minha vida sem se preocupar com essas narrativas, para que aprender filosofia afinal de contas? Praticamente tudo no nosso estilo de vida é moldado por essas construções simbólicas, nossas crenças e códigos morais, nossos desejos e aspirações, o motivo pelo qual saímos para trabalhar ou decidimos viajar, etc. Sem elas, retornaríamos a um estado anterior a linguagem, apenas suprindo nossas necessidades biológicas mais basais. A própria noção que temos do eu é uma impressão criada pela linguagem. Mesmo sem se esforçar para conhecer essas narrativas, nós estamos sempre debatendo-as, quando discordamos das coisas e do mundo como ele é.
Fora da Caverna
A partir do primeiro momento em que alguma narrativa surgiu, elas vem sendo desde então moldadas pela filosofia. Diferentes explicações sobre a natureza do fogo, sua origem e seus usos, assim como as normas de conduta dos bandos em relação à essa ferramenta, foram surgindo, substituindo umas as outras e se diferenciando à medida que os humanos se espalhavam. Isso aconteceu para cada novo objeto abstrato criado e enquanto as narrativas se concentravam nos objetos os filósofos se concentravam nas narrativas e esse processo se estende até hoje.
Se os primeiros Homo sapiens — existem discordâncias sobre a linguagem ter surgido apenas na nossa espécie — discutiam a natureza do arpão, do fogo, etc, hoje discutimos a natureza das Inteligências Artificiais, o direito das mulheres e até a natureza do EU, e isso é sempre feito através da filosofia. A identidade dos deuses está em jogo quando as religiões discutem conceitos metafísicos como alma ou encarnação e isso é feito de maneira crítica dentro da teologia. Na esfera material os filósofos criaram um método empírico para verificar as narrativas e daí surgiu a ciência. Se existem narrativas que sustentam religiões, legitimam a existência do Estado e que tentam explicar o mundo como ele é, surgiram outras que levaram as classes exploradas a se unir em busca de liberdade e varrer o mundo com revoluções, sim, o Capitalismo e o Comunismo são produtos da filosofia.
Se as narrativas precisam de uma narrativa subjacente, até quando essa recursão é possível? É possível se embrenhar nesse emaranhado até chegar à realidade bruta das coisas? Essa é a busca pela verdade que os filósofos tanto falam, existe alguma verdade definitiva ou tudo não passa de uma construção artificial? Nomes como Kant consideram que existe um limite para isso, podemos lidar apenas com aquilo que nossa experiência permite, outros filósofos tentam ir além e entender a realidade não apenas de maneira empírica, outros ainda, tentam mergulhar de cabeça nessa realidade primordial. Nieztsche tentou e sucumbiu à loucura.
Entender a filosofia é entender como a realidade funciona, se é que isso é possível. Muitas pessoas em momentos difíceis, cobram algum tipo de resposta dos deuses ou do universo, mas a ideia de que o universo nos deve algo é criada justamente por alguma narrativa. Hoje é extremamente corriqueira uma preocupação mística com a "energia" do ambiente ou dos objetos, sendo que o conceito de energia, já há muito, estabelecido pela filosofia, nada tem haver com tal assunto. Saber olhar criticamente o mundo é vital para nosso próprio bem estar, aprender como as narrativas operam, pode ajudar a escapar da estagnação ou em focar em problemas mais práticos.
Independente do interesse de cada pessoa, todos filosofam de alguma forma. O problema é quando isso é feito de maneira inadequada, resultando em soluções artificiais, como o discurso de coachs ou livros de auto ajuda, que apenas replicam mecanicamente dicas superficiais de normas de conduta, sem se aprofundar ou ignorando as narrativas existentes. Pior, criando narrativas simplistas e palatáveis, projetadas apenas para o conforto momentâneo, mas incapazes de apresentar uma compreensão mais profunda sobre o mundo.
Filosofar é tentar entender questões fundamentais da nossa natureza: a busca por riqueza/felicidade é algo intrínseco a nossa espécie ou algum tipo de construção artificial recente? Onde começa e termina uma nação? Até que ponto podemos nos culpar pelo colapso ambiental? Quais são os limites da ciência? Etc. Por isso aprender filosofia não é sobre aprender mitos gregos ou estudar as ideias de algum "velhote maluco", é antes de mais nada, compreender a visão que os pensadores do passado tinham sobre duas coisas fundamentais: o subjetivo (o eu, a relação do indivíduo consigo mesmo) e a realidade ou o mundo ao nosso redor. E refletir sobre como essas visões evoluíram ao longo do tempo, iluminando nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.
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